Os quatro acordes da Quinta Sinfonia de Beethoven tocam durante seis dias da semana no horário nobre da televisão brasileira. A abertura da novela “Quanto mais vida, melhor!”, da faixa das 7 horas, usa o dramático “Pã-pã-pã-pãã” composto pelo alemão no século XVIII de forma inusitada: como samba, rock e dance music. A canção que inspirou — e inspira — a vacinação no Brasil, o funk “Bum bum tam tam”, de MC Fioti, usa a flauta de Johann Sebastian Bach para envolver o batidão. A ginasta Rebeca Andrade também abraçou a ideia e uniu Bach com “Baile de Favela” de MC João e conquistou medalha olímpica para o Brasil.

Os exemplos do erudito com o popular são inúmeros. Recentemente, um dos grandes responsáveis para que a tendência ganhasse o País foi o maestro João Carlos Martins. Com sua história de superação, suas misturas do clássico com a MPB e o samba, tornou-se celebridade. Sua vida virou até enredo de escola de samba — reconhecimento que poucos ou quase nenhum condutor de orquestra ganha em vida. “Eu até brinco que já tirei umas 40 mil fotos em aeroportos”, afirma.

Recém-recuperado da Covid-19, o regente de 81 anos está em cartaz com um espetáculo que é a cara de sua ousadia: “De Beethoven a Bethânia”. Ao lado da cantora e compositora Maria Bethânia, o maestro usa a batuta enquanto Bethânia mostra sua voz inconfundível. E quem acha que a música clássica está isolada em grandes casas de concertos ao redor do mundo se engana. Toques de celular, música de espera em ligações, vídeos da Internet e até a famosa chegada do caminhão de gás na vizinhança mostram sua presença no cotidiano, mesmo que despercebida. Ao afirmar que “tudo é Bach”, João Carlos Martins explica que os arranjos feitos pelo compositor “estão em diversas canções” e que a obra do alemão durará para sempre.

Os produtores musicais Ricardo Leão e Daniel Tauszig, responsáveis pela trilha da novela e sua música de abertura, concordam, já que ele foi o primeiro dos grandes e produziu bastante durante a vida. Mas os dois decidiram escolher a Quinta Sinfonia de Beethoven para abrir a atração pois parece ter sido feita sob medida para os protagonistas. A trama aborda o destino de quatro personagens e a relação de cada um com a morte. “Essa ideia do destino batendo à sua porta tem tudo a ver com a história dos personagens e com a ideia que Beethoven quis passar na época”, explica Leão. É por isso que cada um possui seu próprio ritmo. O samba, por exemplo, fica com o jogador de futebol, vivido pelo ator Vladimir Brichta, e a versão pop fica com a executiva vivida pela atriz Giovanna Antonelli.

“Quanto mais vida, melhor!” também coloca Mozart, Gustav Mahler e Vivaldi entre as cenas, fora os hits do momento, o que acaba criando uma seleção de músicas que parecem não combinar entre si, mas dão muito certo. No Twitter, basta digitar “abertura da novela das sete” para pescar os elogios de quem acabou de ouvir a canção pela primeira vez. “Me amarrei demais no Beethoven feito no cavaquinho”, escreveu um dos usuários da rede social.

“Todas as experiências envolvendo a música clássica são válidas”, explica João Carlos Martins. O maestro, que já regeu uma orquestra com bateria de escola de samba, gosta de focar, segundo ele, no bom gosto. “Música clássica não é sinônimo de nariz empinado. Fora dos grandes centros culturais do País, ver uma orquestra é muito difícil. Esse contato é importante”, explica. O maestro, que como pianista se debruçou na obra de Bach, diz ainda que aprova o uso que o Instituto Butantan fez da composição de Mc Fioti com seu compositor favorito. Outra mistura entre Bach e o funk rendeu até medalha olímpica para o Brasil. A ginasta Rebeca Andrade uniu “Baile de favela” com “Tocata e Fuga” para a sua apresentação solo. Apesar de ter excluído a polêmica letra do funk, o ritmo de MC João contagiou os jogos no Japão e ficou na cabeça de todos que torceram pela brasileira.

Quem faz sucesso em memes, vídeos e podcasts é a composição de Carl Off para o poema medieval Carmina Burana. Para antecipar um momento decisivo ou de grande emoção, “Oh Fortuna!” surge para mexer com o emocional do ouvinte. A cantata virou comercial de TV e é uma das mais populares da cultura pop, aparecendo em séries como “The Office” e no desenho animado “Hora da Aventura”.

Até músicas consagradas pelo público têm um pezinho no erudito. “All By Myself”, canção de Eric Carmen imortalizada na voz de Céline Dion, usa a melodia do Concerto para Piano no2 de Sergei Rachmaninoff. O baixo usado em “Seven Nation Army”, música do duo The White Stripes, tornou-se maior que a própria música. Virou grito de torcida de futebol de vários times, incluindo brasileiros como São Paulo, Flamengo e Cruzeiro. A base da canção é inspirada em sete notas do primeiro movimento da Quinta Sinfonia de Anton Bruckner. Ou seja, mesmo quem está apenas cantando “sou, sou tri-co-loooor” está resgatando um passado pra lá de cabeçudo.

Bach, que loucura!
Abertura de funk brasileiro é de compositor do século XVIII

A música “Bum bum tam tam” foi lançada originalmente em 2017 e começava com a frase: “É a flauta envolvente que mexe com a mente”. A tal flauta envolvente da música é um trecho da “Partita em Lá menor” escrita pelo alemão Johann Sebastian Bach por volta de 1723 e que no funk recebe até certo cunho sexual. Para cativar os jovens e incentivar a vacinação contra a Covid-19, o Instituto Butantan decidiu pegar o título da música — “é no Bum bum tam tam” — e criar sua própria versão ao lado de Mc Fioti, também com a flauta de Bach. As duas versões possuem quase dois bilhões de cliques, isso só no YouTube. De alguma forma, a música se transformou em um hino em prol da ciência.

SUCESSO Com a flauta de Bach, MC Fioti criou um hino em favor da vacina (Crédito:Adriano Vizoni)