O físico e astrônomo Marcelo Gleiser, 63 anos, é um pensador prolífico com oito livros publicados e uma reflexão abrangente e original sobre as grandes questões da física e sobre a história das descobertas da ciência. Desde o início dos anos 1990, ele leciona no Dartmouth College, em New Hampshire, nos Estados Unidos, onde ministra cursos como “Física para poetas” e se dedica a traduzir temas complexos para leigos em artigos de jornais. Sua obra percorre temas tão instigantes como a vida fora da Terra, a influência das ideias apocalípticas no pensamento científico e a trajetória de gênios como Johannes Kepler (1571-1630), que observando a órbita de Marte formulou as três leis fundamentais do movimento planetário. Um dos focos de interesse atual de Gleiser é o telescópio espacial James Webb, sucessor do Hubble, que segue uma trilha de conhecimento humano que começou na Babilônia, há milhares de anos, para tentar compreender o funcionamento do universo. “Olhamos para o céu em busca de conhecimento sobre nossas origens, sobre quem somos e se estamos sozinhos ou não”, disse o físico em entrevista para a ISTOÉ.

Qual a importância do telescópio James Webb para o entendimento do universo?
É o mais sofisticado telescópio construído na história. Ele usa tecnologias de ponta, que são extremamente importantes não só para a exploração do espaço, como também para uma porção de aplicações práticas. Muita gente acha que ficar olhando para estrelas e planetas não é útil para a humanidade. Diria que há duas utilidades: uma delas é exatamente desenvolver tecnologias em ótica de observação e em sincronização digital que são extremamente importantes em várias aplicações na sociedade. E a segunda é que nós estamos com este telescópio seguindo uma trajetória que começou na Babilônia, há milhares de anos. É a ideia de que o céu tem as respostas para nossas questões mais profundas. Olhamos para o céu em busca de conhecimento sobre nossas origens, sobre quem somos no universo e se estamos sozinhos ou não. O James Webb começa a contar a história desde o início, porque foca nas primeiras estrelas, nas primeiras galáxias formadas há 13 bilhões de anos.

Qual sua sensação diante das primeiras imagens do telescópio?
A primeira sensação que a comunidade científica teve foi de alívio porque ele funcionou. Em uma máquina dessas, a 50 milhões de quilômetros da terra, se alguma coisa não funciona não dá para ir lá consertar. É diferente do Hubble, que também teve problemas no início, mas estava suficientemente próximo e o ônibus espacial pôde ir até ele com uma equipe de astronautas. Com o James Webb isso é impossível. Então, a primeira reação foi de alívio e a segunda foi de uau!, olha só a beleza, a precisão, a clareza das imagens que esse telescópio já está trazendo. É importante lembrar que ele é diferente do Hubble porque não olha na luz visível, mas no infravermelho, um exemplo de radiação que nós, seres humanos, não podemos ver. As imagens são traduzidas do infravermelho para o visível para que a gente possa entender o que está acontecendo.

Outra missão impressionante atualmente é a Perseverance, lançada em Marte em 2020. O que esperar dela?
Acho que Marte é um planeta fascinante, mas a probabilidade de ter vida lá no momento é extremamente baixa ou zero. A intenção ali não é achar vida presente, mas olhar para a história de Marte. A Terra e os planetas do Sistema Solar têm uma idade aproximada de 4,5 bilhões de anos. Todos nasceram juntos, os planetas, o Sol, são a mesma família, vamos dizer assim. Marte agora é um deserto gelado, com muita radiação ultravioleta e muito hostil à vida. Mas nos primeiros um bilhão de anos tinha uma cara diferente, propriedades diferentes e muita água líquida fluindo na superfície. Por isso que você tem aqueles cânions de rios. Isso pode ter levado à existência de vida primitiva.

E em vida inteligente fora da Terra o senhor acredita?
Quando a gente fala em vida fora da Terra é preciso pensar de duas formas diferentes. Que vida? Essa é a primeira pergunta. Porque na imaginação popular todo mundo está querendo falar de seres extraterrestres inteligentes, complexos e capazes de criar tecnologia. Se existir na nossa galáxia, a probabilidade vai ser extremamente pequena. Mas quando a maioria dos cientistas fala de vida extraterrestre está falando de seres primitivos, tipo bactérias, seres com uma célula só, micróbios. Essa vida mais simples é possível que exista. Mas acho que vai ser muito mais rara do que as pessoas imaginam, inclusive os astrônomos.

Como o senhor vê essa privatização das viagens espaciais?
Se você olha para a história da ciência, você vê duas coisas. Primeiro, que sempre houve uma aliança entre o Estado e a comunidade científica. Logo se entendeu que a ciência desenvolve tecnologias e que o país que tem as melhores tecnologias tem também as melhores armas. É a lógica do poder. Os países que têm as melhores tecnologias são os que ganham as guerras. Mas, paralelamente a isso, há também um esforço privado de empurrar as fronteiras da ciência para novos patamares, independentemente do Estado. Na história da astronomia isso é extremamente importante. No final do século XIX, por exemplo, o empresário americano Percival Lowell, com o dinheiro que ganhou no mercado financeiro, construiu um observatório no Arizona para procurar vida em Marte. Depois dele, o Andrew Carnegie, outro bilionário dos Estados Unidos, financiou vários telescópios, inclusive o que Edwin Powell Hubble usou para descobrir a expansão do universo. Sempre houve essa iniciativa privada na exploração do espaço. A novidade agora é a corrida espacial. É óbvio que isso ia acontecer, o espaço sideral é um excelente negócio e o turismo espacial, uma mina de ouro. A gente essencialmente está repetindo o que fizemos com o colonialismo na Terra.

Acredita que a Lua se transformará numa colônia?
Sim, é muito provável que, eventualmente, a Lua seja usada como um “trampolim” para a exploração do espaço. Lançar um foguete da Terra é muito caro, a gravidade é muito grande e a atmosfera que gera muito atrito. A Lua tem uma gravidade que é seis vezes menor que a da Terra. Se você pesa 60 kg na Terra, você vai pesar 10 kg na Lua. Dá para dividir por seis a quantidade de energia que tem que gastar para lançar um foguete para fora. É muito mais fácil lançar uma missão da Lua do que da Terra. Ela é um patamar para o resto do espaço e, além disso, existe interesse de mineração na própria Lua, rica em certos minérios escassos na Terra, como o hélio-3, isótopo de gás hélio, difícil de fazer na Terra e disponível na Lua. Há uma mistura de interesses e muita confusão em relação a isso tudo. E que tipo de legislação vai definir o que pertence a quem. Como é que se define qual pedaço da Lua vai pertencer a que país. Vai dar muita briga, muito parecida com a briga imperialista entre Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Alemanha nos séculos passados.

Quem conseguir chegar primeiro na Lua vai conseguir levar uma vantagem enorme.
Se tivesse que apostar em alguém, apostaria na China. Eles estão desenvolvendo muito rápido uma tecnologia espacial fantástica, comparável à americana.

Com todos esses avanços, o senhor acha que vivemos uma era de singularidade?
No meu livro “Caldeirão Azul”, tem um ensaio em que eu falo sobre essas coisas. Minha resposta é depende do que você chama de singularidade. Se você chama de singularidade esse negócio que o Ray Kurzweil inventou, essa ideia de que em 2040 teremos uma inteligência artificial que vai superar a mente humana e vai ser consciente, acho uma grande bobagem, ficção cientifica. A gente não tem ainda a menor ideia de como o cérebro desenvolve consciência. Então esse tipo de inteligência artificial tem uma entonação quase religiosa. Por outro lado, não há menor dúvida de que o “machine learning” está se desenvolvendo a grande velocidade. Já temos hoje uma alta sofisticação no uso da inteligência artificial, inclusive para diagnósticos médicos, decisões de investimentos financeiros e sincronização de sinais de trânsito. A utilidade da inteligência artificial vai crescer muito e isso é bom. Mas a ideia de uma mente artificial que dominará o mundo é uma grande besteira.

A experiência com a pandemia deixa algum ensinamento?
Se a gente olha para a história das pandemias, como a Peste do século XIV e a Gripe Espanhola de 1918, uma coisa que deveríamos ter aprendido é que mesmo com toda essa tecnologia e todo o nosso “controle da natureza”, a gente ainda é profundamente frágil e dependente do mundo natural. Nós não estamos acima do mundo natural, fazemos parte dele e somos co-dependentes. Se a natureza fica violenta, ela nos agride de uma forma que a gente não pode se defender. Nos defendemos até certo ponto porque temos a capacidade de inventar vacinas. As lições que podemos aprender é que não estamos acima da natureza e devemos começar a tratá-la de uma forma respeitosa e com humildade. A pandemia é um toque de despertar para repensarmos quem somos nós nesse mundo.

Como o senhor vê o avanço do negacionismo?
O negacionismo é uma visão anárquica, desesperada, de pessoas que acham que a vida delas está fora de controle. E quanto mais a ciência avança, a tecnologia avança, quanto mais vivemos o futuro, mais desesperadas essas pessoas vão ficando e atacam porque se sentem agredidas. No caso do negacionismo atual o que se ataca é a ciência e a tecnologia. A ideia de que as vacinas estão sendo impostas, que não temos uma opção para escapar delas, leva a certo desespero social. As pessoas se fecham em tribos e não querem ver a realidade. É aquela coisa do avestruz que enfia a cabeça na terra para não ver o perigo. É isso que as pessoas estão fazendo e esse governo atual incentiva essas coisas absolutamente ridículas de negar conhecimento cientifico em pleno século XXI. Não é só no Brasil, mas é uma pena que o negacionismo esteja tão popular no País.

Qual o preço que vamos pagar pelo abandono da ciência no Brasil?
Diria que os últimos quatro anos já são uma grande perda de futuro. Acho que anos e anos de pesquisa, mesmo com a coragem, a criatividade e a resiliência incrível da comunidade cientifica brasileira, foram perdidos. Nós temos cientistas de altíssima qualidade, mas mesmo com toda essa bravura a situação atual desmotiva a juventude em querer seguir carreira acadêmica como pesquisador. O jovem se pergunta se é melhor viver de outra forma. Há uma grande perda de capital intelectual e espero que agora, com as eleições, as coisas mudem a ponto de você ter uma renascença para que essa juventude não fique para trás. Não dá para ancorar a economia de um país do tamanho do Brasil em soja e carne. É uma coisa extremamente perigosa.