APARELHAMENTO Danilo Dupas nega interferência na prova e assédio moral, mas não convence (Crédito:Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil)

O presidente Jair Bolsonaro está transformando o Ministério da Educação (MEC) numa plataforma de doutrinação dos estudantes brasileiros e de perseguição ao pensamento crítico, numa espécie de puxadinho do gabinete do ódio. O que está em jogo é a mudança da cabeça da juventude, que começa a ver a verdade relativizada por um governo negacionista e de perfil autoritário e a ficar com medo do que escreve nas redações temendo notas baixas ou retaliações do regime. Toda confusão em torno do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) só confirma o aumento da interferência ideológica na execução das provas de avaliação e na gestão estratégica do ensino público.

Trinta e sete funcionários do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia vinculada ao MEC que prepara o exame, pediram demissão, revoltados com os rumos do órgão e denunciando interferências indevidas e assédio moral do atual presidente, Danilo Dupas. Enquanto isso, Bolsonaro dá sinais ditatoriais ao dizer que está deixando o exame com a “cara do governo”e que vai “começar a história do zero”. O objetivo de interferir nas questões do Enem foi admitido pelo próprio presidente, que está sendo investigado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), a partir de uma denúncia feita por deputados de oposição. O TCU quer saber se, de fato, as perguntas seguiram critérios técnicos ou houve algum ajuste de oportunidade. Como todo projeto de ditadura que se preza, o bolsonarista começa pela educação. E o cerco ideológico vai se instalando sorrateiramente e quando menos se espera a liberdade de pensamento desaparece. Dois dias antes das primeiras provas do Enem, Bolsonaro declarou, durante uma viagem para Dubai, que o exame tinha ficado do jeito que ele queria. “Começam agora a ter a cara do governo as questões da prova. Ninguém está preocupado com aquelas questões absurdas do passado”, disse. Depois voltou atrás e negou ter visto ou alterado alguma pergunta. Mas na quartafeira, 24, durante uma cerimônia para certificar 43 escolas cívico-militares, ele desembestou a elogiar o ministro Milton Ribeiro, a quem atribuiu a capacidade de eliminar o “lixo acumulado” no MEC. “Não escolhi o Milton pela sua formação religiosa, mas ele é um pastor. Quem poderia imaginar um pastor no MEC? O que nós queremos para nossos filhos? Que o menino seja menino, que a menina seja menina, e não aquele lixo acumulado de 2003 para cá, quando se falava de quase tudo na escola, menos de física, química e matemática”, afirmou.

TRUCULÊNCIA Bolsonaro e Ribeiro transformaram o MEC em instrumento da guerra cultural (Crédito:Jorge William)

Na sua jornada destrutiva, Bolsonaro atingiu um primeiro objetivo: esvaziar as provas do Enem. O número de candidatos inscritos — 3,1 milhões — foi o menor dos últimos 16 anos, o que deixa nítido o objetivo de estreitar o corredor que leva o jovem ao ensino superior. O ministro Ribeiro disse, em uma entrevista para a TV Brasil em agosto, que “as universidades deveriam ser para poucos”. “A questão principal, aquela que mais nos preocupa, é a queda acentuada no número de inscritos neste ano”, afirma o diretor- executivo do Sindicato das Mantenedoras do Ensino Superior de São Paulo (Semesp), Rodrigo Capelato. “Isso indica que muitos jovens ficaram afastados e tiveram que adiar seu sonho.”

O Enem é a principal porta de entrada nas faculdades, além de garantir acesso a programas como o Prouni, que oferece bolsas gratuitas, e o Fies, um financiamento com juros baixos. Segundo Capelato, a diminuição das inscrições na prova está associada à impossibilidade de 2,8 milhões de alunos se inscreverem com isenção de taxas, algo que o MEC não fez a mínima questão de evitar. Esse grupo de alunos havia recebido a isenção em 2020, mas não conseguiu fazer as provas devido às restrições da pandemia. Como a isenção não pode ser pedida por dois anos seguidos, foram vetados em 2021. O governo demonstrou insensibilidade com a situação e acabou promovendo a prova menos concorrida da história, que ainda teve 800 mil abstenções. “O MEC poderia facilmente ter repensado a regra e ajudado milhões de estudantes”, afirma.

O desmanche programado do Inep está dentro da lógica e do cronograma do governo. Ribeiro comemorou o baixo número de inscrições. O fato da prova de domingo, 21, ter sido aparentemente correta só se deve ao fato das perguntas estarem incluídas no Banco Nacional de Itens (BNI), considerado o “pulmão do Enem”, um estoque de questões de alta, média e baixa dificuldade, préselecionadas, testadas e aprovadas para serem aplicadas no exame. O problema é que esse banco está se esgotando — restam menos de 200 perguntas — e o atual governo está em fase de treinamento dos profissionais envolvidos com a produção das novas questões que abastecerão o exame nos próximos anos. É na renovação do BNI que Ribeiro aposta suas fichas para mudar realmente o conteúdo das provas, impor sua visão da sociedade e do mundo e controlar a narrativa histórica que se propaga nas escolas do País. O controle do Enem e de outros programas de avaliação do Inep, como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes do Ensino Superior (Enade), é a pedra de toque da guerra cultural levada adiante pelo governo, que quer extirpar qualquer conteúdo que o desagrade do sistema educacional.

Bolsonaro convocou este ano o primeiro edital para a escolha dos professores que montarão as novas questões. Eles foram chamados em setembro para o curso de capacitação que já foi concluído, mas o prazo até a próxima prova é curto e comprometerá a qualidade do pré-teste do exame. “É uma situação extremamente delicada essa que estamos vivendo e presenciando. Havia várias estratégias de testagem de itens que eles poderiam ter feito. Uma delas, por exemplo, é ter usado esse Enem agora que passou para fazer um pré-teste com algumas questões, mas não houve nada disso”, afirma Maria Inês Fini, ex-presidente do Inep na gestão Temer. Educadores e profissionais acreditam que o presidente possa utilizar dessa abertura de edital para controlar totalmente o Enem 2022.

IDEOLOGIA Para Alexandre Retamal, órgão não pode sofrer ingerências políticas (Crédito:RUY BARON)

O governo pode escolher professores de extrema direita, conservadores e que tenham uma visão ideológica igual à do capitão. Que estejam abertos a usar eufemismos e a trocar, por exemplo, ditadura militar por regime militar ou que diminuam a frequência das questões sobre meio ambiente, indígenas e público LGBTQI+, considerados “temas sensíveis”. Assuntos de minoria serão sumariamente excluídos. Um dos objetivos do MEC é revisar a história, principalmente no que se refere à participação dos militares na política e reconstruir a educação brasileira eliminando qualquer discussão sobre racismo estrutural, gênero ou problemas sociais. Bolsonaro quer substituir “golpe militar” por “revolução” na referência ao início da ditadura no Brasil, em 1964, e quer também que haja uma pergunta específica sobre quem foi o primeiro presidente depois do golpe, Castelo Branco. Na sua estratégia revisionista, o governo pretende minimizar o papel da censura e da tortura no regime militar e encobrir erros e excessos das Forças Armadas.

INTERVENÇÃO Ambiente no Inep é de tristeza, toxicidade e pressão (Crédito:Igo Estrela/Metrópoles)

Guerra final em 2022

“Bolsonaro tem três alternativas: Uma delas é a privatização do Enem e a criação de um comitê que escolha as questões. Isso seria péssimo porque foi a metodologia de escolha que fez do Enem o melhor sistema de avaliação do mundo. A segunda é a contratação de servidores ultraconservadores e fascistas para a elaboração de questões, mas acredito que os servidores não vão permitir. E a terceira é a realização do pré- teste sem qualidade e segurança colocando em risco o exame”, afirma o educador Daniel Cara. “Tenho certeza de que ele vai usar esse edital para mudar o Enem. É uma obsessão Ele acredita que o MEC deve ser uma caixa de ressonância da visão do governo sobre a sociedade. Desde 2018, ele ataca o exame e 2022 será a guerra final contra o Enem”, afirma.

INCERTEZA O TCU investiga se a prova do Enem sofreu algum tipo de influência externa (Crédito:Ronaldo Silva)

O Inep está em frangalhos e sob os efeitos do assédio de Dupas, que tem carta branca de Bolsonaro. Servidores entrevistados pela ISTOÉ, afirmam que o ambiente dentro da pasta é de extrema tristeza, toxicidade e pressão. “Quando estamos em um espaço onde nosso trabalho é comentado negativamente pelo presidente ou quando o ministro da Educação fala de nós de maneira equivocada nas audiências da Câmara e do Senado, é muito triste. Prefiro acreditar que Bolsonaro é ignorante no sentido de desconhecer o que a gente faz, porque não é possível falar tanta bobagem sobre o trabalho sério, técnico, complexo e sofisticado feito aqui dentro”, afirma um servidor do Inep. Dupas foi ao Congresso explicar a crise no órgão e a confusão em torno do Enem, negou qualquer interferência ou assédio, mas não convenceu. “A crise do Inep vai muito além do Enem e é mais um exemplo de que o governo transformou o MEC num instrumento da guerra cultural”, diz o diretor-executivo da ONG Todos pela Educação, Olavo Nogueira Filho. “Há um esforço calculado para destruir tudo que se construiu na educação em 30 anos.”

Segundo o presidente da Associação dos Servidores do Inep (Assinep), Alexandre Retamal, as exonerações em massa foram feitas para alertar a sociedade e fazer o Inep mudar a atuação. Ele esclarece que a ação não teve o objetivo de prejudicar o Enem, e que o foco dos servidores é “defender o Inep, mostrar à sociedade o risco para as futuras provas e ir contra a privatização do BNI”. “Mais do que uma solução pontual, como a troca do presidente do Inep, precisamos de uma solução estrutural. Queremos a garantia de autonomia do Inep, do IBGE e do Ipea, três órgãos produtores de evidências, estatísticas, que monitoram as políticas públicas brasileiras, e que são mais atacados no governo Bolsonaro. O Inep precisa ter essa liberdade de atuação sem estar sob influências políticas e ideológicas”, afirma.

O que se verificou também é uma movimentação atípica da Polícia Federal em torno do exame. Um documento interno do Inep revelou que um policial teve acesso a uma sala segura, onde o Enem é elaborado de maneira sigilosa. Nos dias seguintes, a direção do órgão estabeleceu o sigilo na investigação sobre o caso. A PF nega alguma mudança no padrão de atuação em relação aos anos anteriores ou qualquer tentativa de vigilância ou interferência do conteúdo das provas. No dia seguinte ao exame, na entrada do Palácio do Planalto, indagado por um apoiador se pretendia seguir o modelo de Hitler na educação brasileira e fazer um trabalho mais intenso com as crianças, Bolsonaro reclamou das dificuldades para aplicar suas idéias. “Você não consegue, tem ministério que é um transatlântico. Não dá para dar um cavalo de pau. Gostaria de imediatamente botar Educação Moral e Cívica, um montão de coisa lá”, afirmou. A Educação Moral e Cívica fazia parte da grade curricular do ensino básico durante a ditadura e tinha como objetivos estimular o culto à pátria e a obediência à lei, principalmente ao AI-5. Era a coisa mais maçante e inútil do mundo, que em nada contribuiu para uma cidadania crítica e ativa. E é esse lixo autoritário que Bolsonaro quer que a gente engula.