Joe Biden conseguiu em um prazo recorde reorientar a política americana. Agora, acelera na frente externa, e sua agenda internacional afeta diretamente o Brasil. Na Cúpula de Líderes sobre o Clima que convocou para 22 abril, ele quer assegurar o compromisso de todos com metas contra a mudança climática, revertendo a política negacionista de seu antecessor, Donald Trump. E conter a política antiambiental de Jair Bolsonaro está no centro da sua tentativa de assumir a liderança internacional em energia limpa.

Bolsonaro é um dos alvos de Biden desde a campanha presidencial. Salvar a Amazônia virou a prioridade externa do americano, que chegou a sugerir um fundo de US$ 20 bilhões para a região e ameaçou impor sanções econômicas ao Brasil se o desmatamento não cessasse. Na vital relação com os EUA, a preservação ambiental pode virar para Bolsonaro o que a questão dos direitos humanos representou para o regime militar: um fator central de disputas e estremecimento. Por enquanto, Biden negocia um acordo com o brasileiro. À frente das negociações, John Kerry tem ressaltado que qualquer ajuda está condicionada a medidas concretas para conter a destruição. Ex-secretário de Estado, Kerry é um político experiente. Espera-se que drible as armadilhas do governo Bolsonaro. A principal é o ministro Ricardo Salles, que escapou da última degola ministerial e procura se segurar no cargo anunciando uma ajuda de US$ 1 bilhão ao Brasil até o dia 22. Isso, depois de implodir o Fundo Amazônia ao se indispor com os seus patrocinadores, a Noruega e a Alemanha. Agora, Salles deseja embolsar a ajuda para, a partir daí, reduzir o desmatamento em até 40% em 12 meses. É uma chantagem para obter dinheiro — uma estratégia que nega as responsabilidades da sua pasta, beira o cinismo e dificilmente será engolida pelos americanos.

BOLA DA VEZ Ricardo Salles é empecilho para acordo com americanos (Crédito:Adriano Machado)

Nem do lado brasileiro há consenso sobre essa estratégia. “Não acredito que Biden vá soltar dinheiro para o Brasil agora”, adiantou o vice-presidente, Hamilton Mourão, que assumiu o Conselho da Amazônia Legal depois do escândalo internacional com as queimadas. O vice considera que os americanos vão querer, antes de mais nada, ver os dados de desmatamento a serem revelados pelo Inpe em julho. À frente das ações do Exército para conter a devastação, que se encerram em abril e após consumir cerca de R$ 400 milhões, o vice também discorda da possível destinação do dinheiro. Ele não quer destinar parte dele para a Força Nacional. Salles quer, porque isso significaria mais recursos para as Polícias Militares, que são base de apoio de Bolsonaro.

Salles contra a PF

O ministro do Meio Ambiente também deseja desqualificar a atuação da Polícia Federal no combate aos desmatadores. Salles está em guerra com o chefe da PF do Amazonas, Alexandre Saraiva, responsável pela maior apreensão de madeira da história do Brasil, em dezembro. Não apenas criticou a apreensão, como defendeu publicamente as empresas responsáveis pelo esquema, chamadas de “organização criminosa” por Saraiva. E insistiu no elogio na última quarta-feira, 7. O dirigente da PF, por outro lado, conta com a simpatia de Mourão e declarou que na sua gestão não passaria “nenhuma boiada”, numa estocada no titular do Meio Ambiente. No momento em que os americanos exigem metas tangíveis para eliminar o desmatamento ilegal até 2030, é até irônico que o responsável pela área no Brasil esteja atuando para facilitar a ação de quadrilhas.

No momento em que os americanos exigem metas tangíveis contra o desmatamento ilegal, é irônico que Salles facilite a ação de quadrilhas

É com esse governo disfuncional que o presidente americano vai tratar. O risco, dizem entidades não governamentais, é Biden acabar referendando, na prática, a política de Bolsonaro. Nesse sentido, 200 organizações entregaram uma carta ao governo americano alertando que nenhum acordo deveria ser firmado antes que o desmatamento na Amazônia seja reduzido aos níveis determinados pela Política Nacional sobre Mudança do Clima. Um dos signatários do documento, Marcio Astrini, do Observatório do Clima, diz que o tom das conversas bilaterais já mudou. “A administração Biden entendeu que o custo de fazer negócios com Bolsonaro seria muito alto”, diz. “A boiada do presidente já está passando em diversas áreas, e todo cuidado é pouco”, afirma outro ambientalista, que está a par das negociações com as autoridades americanas.

DEVASTAÇÃO Árvores são derrubadas no Acre. Desmatamento é o maior em 12 anos (Crédito:Ricardo Funari / BrazilPhotos Alamy)

Seja qual for o desenrolar das tratativas, o cerco se fecha, e não só no exterior. Empresários pressionam desde o ano passado por uma mudança de rota. Uma coalizão que reúne mais de 280 companhias do agronegócio e setor financeiro enviaram uma carta no dia 7 com a mesma demanda. Investidores internacionais já vêm alertando o governo há meses e até entre políticos há exaustão com Salles. Ele representaria apenas mais uma espécie estranha e curiosa da fauna bolsonarista, se não ameaçasse agora a relação vital com o nosso segundo parceiro comercial. Além das sanções comerciais, os EUA têm outros instrumentos de pressão. Podem, por exemplo, travar a entrada do País na OCDE. Ou adotar, como União Europeia e Reino Unido já ensaiam, leis para punir empresas que importem produtos ligados ao desmatamento e bancos que os financiem. “O governo Bolsonaro vai ser obrigado a engolir as demandas ambientais, que são centrais para Biden”, diz o professor de Relações Internacionais da Faap Carlos Gustavo Poggio. Para ele, a saída de Ernesto Araújo do Itamaraty já foi uma sinalização nesse sentido. Outra, melhor, seria a mudança no Meio Ambiente. O especialista acha que até no caso de a ajuda de US$ 1 bilhão se concretizar o governo pode perder. “Se isso acontecer, Bolsonaro vai estar apostando em uma deterioração na relação com os EUA. Vai colocar o Brasil em maus lençóis.”

É inédito que uma negociação bilateral de alto nível como a liderada por Kerry seja focada em meio ambiente. Em geral, tais negociações envolvem questões comerciais ou geopolíticas. Poderia ser um trunfo para o País que tem a maior reserva ambiental do mundo. Mas, em se tratando do governo Bolsonaro, não seria surpresa um fracasso no diálogo. Nesse caso, os EUA se juntarão à Europa para isolar ainda mais o mandatário brasileiro. Ricardo Salles pode até ter ganhado sobrevida na última reforma ministerial, mas, depois da saída do chanceler-pária, é o próximo da fila.