Analista privilegiado da vida econômica e da política nacional, o economista Edmar Bacha, 80 anos, fez parte das equipes que ergueram os Planos Cruzado e Real, além de ter presidido o IBGE e o BNDES. Quando vê a inflação em alta como atualmente, ele diz que agora ela é determinada por fatores conjunturais e pode perfeitamente ser tratada sem projetos mirabolantes, como aconteceu há três décadas. O que dificulta a situação do País, segundo ele, é a crise política aberta por Bolsonaro, com ameaças à democracia e iniciativas autoritárias. Apesar disso, nesse período pós-pandemia e ainda sob efeitos da guerra na Ucrânia, ele entende haver uma mudança na globalização e o Brasil terá chances de se reinserir na cadeia de suprimentos planetária, algo que não fez até agora. “Nessa altura, a gente deveria estar pressionando para a efetivação do acordo comercial do Mercosul com a União Europeia. Mas, para isso, seria necessário resolver o problema Bolsonaro”, disse Bacha à ISTOÉ. Ele acaba de lançar o livro “No País dos Contrastes – Memórias da Infância ao Plano Real”, no qual fala da sua formação intelectual e da experiência como participante em momentos cruciais da vida econômica brasileira.

Como o senhor, que participou do Plano Cruzado e do Plano Real, vê a volta da inflação?
É diferente hoje. Naquela época, estávamos lidando com hiperinflações. No Plano Cruzado, a inflação estava 15% ao mês. No Plano Real, 35%. Agora, estamos falando em um aumento preocupante da inflação, com o empobrecimento consequente da população, mas é algo que pode ser tratável sem a necessidade de planos econômicos mirabolantes.

A inflação poderia estar sendo melhor enfrentada?
O Brasil teve um problema adicional, que foi essa crise política iniciada no ano passado, provocada pelas ameaças à democracia pelo presidente, o que gerou muita perturbação e receio sobre os destinos do País, refletindo em uma desvalorização cambial muito forte, que só agora está sendo revertida. Fora isso, houve um fenômeno mundial. O Brasil foi afetado como os demais países do mundo. A inflação nos Estados Unidos também está alta, 7% ao ano. Os demais países da América Latina estão nesse nível. Aqui, houve a conjunção com um problema institucional brasileiro. A crise amenizou e o câmbio está voltando por causa disso. Tivemos também o aumento do preço das commodities e a alta da taxa de juros. Há esses componentes todos, que são de natureza conjuntural.

Há algum problema específico da gestão econômica do ministro Paulo Guedes?
Acho que há uma questão política. A dificuldade que a equipe tem para lidar com o governo Bolsonaro, que, primeiro, tentou se basear somente no militarismo e, quando viu que isso não ia funcionar, porque a reação da sociedade foi muito forte contra essa tendência autoritária, ele se amarrou ao Centrão. E o Centrão só quer tirar umas lascas do governo, dificultando a ação de uma política econômica mais racional.

Em 1974, o senhor cunhou o termo Belíndia, uma mistura entre Bélgica e Índia para mostrar a desigualdade durante a ditadura. O conceito ainda tem atualidade?
Com certeza. A gente deu uma melhorada depois do Plano Real e com o Bolsa Família, mas o Brasil continua com um grau de desigualdade só comparável com os países africanos. E a nossa desigualdade é muito profunda. Não houve nas últimas décadas uma reversão importante em direção a uma sociedade menos desigual. É um problema fundamental no Brasil ainda hoje.

Nos tempos em que dirigiu o BNDES, em 1995, o senhor cobrava uma ampla reforma administrativa e maior eficiência da iniciativa privada. Evoluímos nesses aspectos?
Acho que avançamos muito pouco. Hoje, o Brasil ainda gasta com funcionalismo público uma proporção muito significativa do PIB, muito mais alta que outros países de renda semelhante, e, portanto, a reforma administrativa ainda está devendo. Fizemos algo na previdência, mas não no nível necessário. Ainda gastamos na previdência um valor absurdamente alto em termos de países em desenvolvimento, como nós somos. Então essa questão ainda está pendente. Tanto que o Brasil, além de Belíndia, tem outra alcunha, dada pelo Delfim Neto. Ele chamou o Brasil de Ingana, País com impostos da Inglaterra e serviços públicos de Gana.

E quanto à eficiência da iniciativa privada?
Acho que a questão aí é que o Brasil renunciou a ter uma participação mais ativa no comércio internacional no que se refere tanto à sua indústria quanto aos seus serviços. O País optou por participar do comércio internacional somente através da agricultura e da mineração, que vão muito bem, obrigado, enquanto que a indústria e os serviços continuaram voltados para seus próprios umbigos, para um mercado interno altamente protegido. E sem concorrência. Ao contrário do que ocorre com a agricultura e a mineração – na agricultura, a soja tem que concorrer com os Estados Unidos, e a mineração concorrer com a Austrália – a indústria e os serviços estão protegidos por barreiras tarifárias extremamente elevadas. Elas gozam de uma posição monopolista de exploração do mercado interno, que, na verdade, resolve o problema em curto prazo para eles, com lucros elevados, mas como o mercado não se desenvolve, eles acabam se encolhendo. Porque não há ganhos de produtividade que dependem fundamentalmente de tecnologia, de economias de escala e de concorrência. E nada disso a gente tem na indústria e nos serviços.

Ainda somos uma economia fechada?
Substancialmente fechada. E é muito difícil, porque se você é um país como os Estados Unidos, você pode até se dar ao luxo de ter políticas protecionistas, as perdas são relativamente pequenas. Mas como a China conseguiu ser o que ela é hoje? Através da participação no comércio internacional. Nós não soubemos fazer isso.

E esse cenário de pós-pandemia, com guerra na Ucrânia, está mudando a globalização? Pode significar uma nova oportunidade para o Brasil?
Acho que sim. A globalização partiu do pressuposto que iria abranger todos os países do mundo, inclusive os ex-comunistas. O capitalismo havia triunfado em todos os lugares e havia essa ilusão. Com base nela, se montaram as cadeias internacionais de valor, incluindo países democráticos e autoritários. E o que a gente está vendo agora, o que o Putin demonstrou claramente, é que isso é pura ilusão. Países autoritários são imprevisíveis, ao contrário de países democráticos, que podem variar de posição, mas sempre têm contrapesos internos importantes para evitar aventuras contra outros países e contra a ordem econômica internacional. E o Putin, com essa invasão da Ucrânia, criou uma nova situação no mundo. A Europa se deu conta de que não pode mais depender tanto do gás e do petróleo russos e de outros recursos naturais que vêm desses países. Há um sentimento, e até um certo temor também, sobre quais são as intenções reais da China em relação a ordem econômica mundial, a toda essa questão pendente em Taiwan. Quer dizer, o mundo ficou muito mais incerto do que a gente acreditava até pouco tempo. E, nesse sentido, há um tentativa de redefinição, especialmente nas cadeias globais de valor, das quais o Brasil não participa ou participa muito ligeiramente. Há uma oportunidade para participarmos mais ativamente dessas cadeias, que vão precisar diversificar fontes de suprimento para poder ter um sistema com mais garantias do que um sistema que depende de poucos supridores, cuja situação de segurança é precária.

O que Brasil deveria estar fazendo agora para se inserir nessa nova ordem global?
A gente deveria estar pressionando para a efetivação do acordo comercial do Mercosul com a União Européia. Mas, para isso, a gente precisaria resolver o problema representado por Bolsonaro. Enquanto houver essa ameaça de extinção da Amazônia pelo governo nós não vamos conseguir cooperação internacional.

Bolsonaro limita muito nosso vôo?
Claramente, mas, por outro lado, Lula tem uma atitude muito protecionista. Lula nunca foi um cara que teve uma visão de abertura para o mundo. Veja agora que a posição dele em relação à política de preços da Petrobras. Ele quer dar as costas para o mundo e adotar políticas de preços aqui igual a que a Argentina adota historicamente, o que é a causa pela qual a Argentina conseguiu o milagre de ser o único país que era rico e virou pobre.

Qual é a sua visão do Plano Real quase 30 anos depois?
Acho que o fato do Plano Real ter dado certo foi um milagre. Se você olhar a imprensa em 1993 e começo de 1994, todo mundo achava que iria fracassar. E havia uma dúvida muito grande. (Fernando) Collor havia sofrido impeachment e subiu o Itamar (Franco), com dois anos pela frente. Nos sete primeiros meses de governo, o Itamar teve três ministros da Fazenda. A situação era muito precária e o apoio no Congresso era tênue. A oposição do PT era muito acirrada. Bolsonaro também estava lá fazendo bagunça contra. Uma situação política difícil e um plano daquela magnitude. Lembro que a inflação nos doze meses anteriores foi de 3.000% ao ano. Acho que nem temos que discutir se poderia ter sido melhor. Só temos que agradecer a Deus.

Membro da ABL, mais de 20 livros produzidos. Qual é o objetivo dessa nova obra?
Esse livro é filho da pandemia. Ele nasceu e frutificou porque eu fiquei nove meses preso no meu sítio em Teresópolis, ocasião em que fiquei vasculhando meus arquivos. A motivação inicial foi um pedido da academia para escrever um artigo sobre Celso Furtado. Aí lembrei das cartas que tinha enviado para minha mãe em 1964, quando eu era estudante em Yale e convivi durante um ano com ele. Como é difícil falar coisas novas sobre Furtado, achei que o ângulo do estudante da década de 1960 seria interessante. Esse primeiro artigo saiu e continuei lendo as cartas. Vi que eram um verdadeiro diário de minha experiência lá fora. Produzi mais dois artigos sobre o curso de mestrado e sobre a minha visão dos Estados Unidos.

É um livro de formação intelectual?
De formação intelectual e experiência na política econômica. Acho que o que vai interessar mais o público em geral são os bastidores do Plano Cruzado e do Plano Real. Foram dois marcos na história econômica do País dos quais participei intensamente.