A história do rei Midas, da Frígia, é uma das mais populares da mitologia grega. Segundo o mito, o monarca tinha o poder de transformar tudo o que tocava em ouro. Em Recife, séculos depois, também tivemos uma espécie de Rei Midas, mas suas transformações aconteciam em dose dupla: tudo que Ricardo Brennand tocava virava ouro; em seguida, virava arte. O engenheiro morreu aos 92 anos na sexta-feira 24, em Recife, capital pernambucana, após complicações causadas pela Covid-19. É interessante imaginar que um empresário que esteve à frente de um conglomerado de indústrias de aço, cimento, vidro e açúcar não deixará, como maior legado, o seu império corporativo. As empresas continuam na ativa, mas a grande herança para o País é fruto da sua paixão pelas artes.

O Instituto Ricardo Brennand (IRB), complexo arquitetônico inaugurado em 2002, ocupa uma área de quase 80 mil metros quadrados no bairro da Várzea, em Recife. A primeira coisa que chama a atenção dos milhares de turistas e estudantes que visitam o local todos os anos é a quantidade de obras de arte dispostas logo no jardim de entrada, que abriga estátuas e esculturas. O marco zero do acervo é o edifício em formato de castelo, o Museu das Armas.

PERMANENTE Oitocentos brasileiro: exposição reúne obras de nomes como Benedito Calixto e Jean-Bapstiste Debret, entre outros (Crédito:Divulgação)

Concentra a coleção de peças de guerra pelas quais Brennand se apaixonou ainda na infância – seu ímpeto de colecionador começou aos 10 anos, quando ganhou um canivete do pai. Hoje, a pequena lâmina divide o espaço com outros cinco mil armamentos, entre espadas, adagas, canhões e demais objetos comprados ao longo de décadas em leilões e antiquários em todo o mundo. Entre as peças, destaque para o conjunto de armaduras datado da época do descobrimento do Brasil, para a coleção de espadas que pertenceram ao Rei Faruk, do Egito, e os fuzis que foram de Dom Pedro I e Dom Pedro II.

Na Pinacoteca do instituto está o seu principal tesouro: a maior coleção particular em todo o mundo de obras do pintor holandês Frans Post (1612-1680). Nas 15 telas delicadas como pequenas joias estão os primeiros registros das Américas e as primeiras paisagens brasileiras. Brennand tinha apreço pelas obras do artista não apenas pela obsessão por miniaturas – o instituto também abriga uma coleção específica de obras diminutas –, mas porque Frans Post está intimamente ligado à cidade de Recife e à ocupação holandesa em Pernambuco, período pelo qual Brennand era apaixonado. Frans Post foi um dos pintores designados para acompanhar a comitiva ao Brasil de Maurício de Nassau, que governou Pernambuco entre 1630 e 1654 – o outro artista era Albert Eckhout. As obras de Post se espalharam após a volta de Maurício de Nassau para a Europa, mas ao longo dos anos Brennand conseguiu comprá-las e hoje, séculos depois, ocupam as paredes da sua Pinacoteca. A influência do “Brasil Holandês” também está presente em uma grande diversidade de obras, que vão de livros e moedas a partituras musicais escritas durante o período. Hoje, cerca de 50% das peças do instituto estão ligadas a esse episódio da história brasileira.

Além do Museu das Armas e da Pinacoteca, há uma galeria para eventos e exposições onde estão obras de nomes como Antonio Parreiras, Benedito Calixto, Emil Bauch e Jean-Baptiste Debret, entre outros, e uma biblioteca repleta de raridades, como o “Rerum per Octennium in Braziliae”, do polímata Caspar Barlaeus, e “Historia Naturalis Brasiliae”, de Willem Piso e George Marcgrave, ambas impressas no século 17. O prédio mais charmoso de todo o complexo, no entanto, é a capela gótica de Nossa Senhora das Graças, construída em homenagem à mulher, Graça, com quem Brennand teve oito filhos.

EM RECIFE, TESOUROS DE TODO O MUNDO

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Mecenato à brasileira

MAPAS Livro do holandês Caspar Barlaeus é de 1647

A prática de frequentar leilões e adquirir obras de arte o tornou um dos mecenas mais importantes da história do País. Segundo seu primogênito, Ricardo Brennand Filho, o instituto nasceu porque a coleção cresceu tanto que já não cabia mais na residência da família. “Meu pai sempre foi apaixonado por artes e história, mas em casa a conversa era focada nos negócios e no cotidiano das empresas. Ele era centralizador nas questões do instituto e muitas vezes só ficávamos sabendo das obras depois que ele já havia comprado”, lembra Brennand Filho. “A rapidez com que criou um acervo tão relevante foi uma surpresa. Nos últimos anos, pedimos para parar de adquirir novas obras porque a coleção já era muito grande, mas ele tinha uma paixão quase compulsiva pela ampliação da sua coleção.”

Membro da Academia Brasileira de Letras e amigo da família, o escritor Joaquim Falcão definiu o mecenas como um personagem de múltiplas facetas. “Alguns homens, e mulheres também, nascem poucos. Outros nascem muitos. Doutor Ricardo nasceu muitos. Não existe um Doutor Ricardo. Existem infindáveis Doutores Ricardos. São tantos e tão variados que, às vezes, não cabem em si mesmo. Às vezes convergem, mas às vezes divergem-se. Brigam e concorrem entre si. Mas sempre se complementam e extrapolam-se. Sua marca não é a homogeneidades. É a auto-heterogeneidade.”

No plano físico, o corpo de Ricardo Brennand foi cremado no Cemitério Memorial Guararapes, em Jaboatão, município próximo à Recife.

Mas sua presença não se encerra com a despedida terrena, pelo contrário: ele seguirá vivo entre as paredes do castelo que mantém seu legado, uma fortaleza que guardará para sempre a cultura do Brasil.

Tudo começou com um canivete

O COLECIONADOR de coleções Ricardo Brennand: instituto guarda “antigos sonhos do menino de ontem” (Crédito:Divulgação)

“Quando Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Ainda criança, ganhei um canivete do meu pai. O que seria um brinquedo para qualquer menino de minha idade veio a despertar em mim uma vocação de colecionador. Ao longo de minha vida, por mais de meio século reuni, de forma apaixonada, os mais diferentes exemplares de armas brancas, produzidos por exímios artesãos, todos ligados diretamente à história do Ocidente e do Oriente. Com o passar dos anos resolvi repartir a contemplação e a vivência desse acervo com a gente do meu Pernambuco e para isso foi criado, sem fins lucrativos, em 2001, o Instituto Ricardo Brennand, como um complexo arquitetônico onde encontram-se guardados antigos sonhos do menino de ontem que conseguiu reunir esse notável acervo de peças artísticas.” Ricardo Brennand, em texto de apresentação do Instituto


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