Outro dia, naveguei com meus filhos pré-adolescentes por antigos desenhos e programas infantis, desde aqueles que assisti quando era moleque (Os Herculóides e Brasinhas do Espaço, pois é) até os que passaram na TV pouco antes de eles nascerem. A certa altura, esbarramos em TV Colosso, exibido nos anos 90. Lá estava o Capachão, puxa-saco do seu magnânimo chefinho, a quem ele desejava saúde logo cedo, para o caso de um espirro acontecer durante o dia.

Mas por que estou falando disso? Porque em meu cérebro arruinado tudo se mistura com política, mais cedo ou mais tarde, e este é um artigo sobre o ministro Kássio Nunes, do STF.

Em decisão publicada neste sábado, Kássio Nunes derrubou limitações estabelecidas em todo o país à realização de cultos religiosos presenciais. Fez isso, apesar de reconhecer que o momento da pandemia é de extrema gravidade.

Lembrei-me do Capachão. Embora não tenha superior hierárquico no STF, Kássio Nunes decidiu ter um chefinho: Jair Bolsonaro, aquele que o indicou ao cargo.

Para liberar a presença em templos e igrejas, o ministro contrariou um voto que ele próprio deu poucas semanas atrás e enfileirou argumentos que são de uma ruindade excruciante.

Kássio Nunes fez mal à sua reputação, mas beneficiou Bolsonaro de duas maneiras: reduziu a amplitude da decisão do STF que autorizava prefeitos e governadores a criar regras de distanciamento social, algo que o presidente desejava havia um ano, e agradou um dos principais grupos de sustentação do bolsonarismo, as lideranças evangélicas.

Recentemente, o STF rejeitou por unanimidade uma ação apresentada pela Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure), por entender que a entidade não tem as características exigidas pela lei para ajuizar um tipo específico de ação, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Esse foi o voto que Kássio Nunes contrariou. Diante da mesma Anajure, ajuizando o mesmo tipo de ação, ele mudou seu entendimento anterior, mandou às favas o consenso do plenário do Supremo e aceitou a causa.

Depois disso, ele teceu reflexões sobre a maneira como leis que suspendem cultos ferem a liberdade religiosa. Seu argumento é capcioso. O princípio da liberdade religiosa surgiu, historicamente, para proibir o Estado (ou grupos organizados dentro do Estado) de suprimir certas crenças. Ele é uma arma contra a discriminação desta ou daquela igreja. Uma interrupção temporária de todos os cultos, de todas as religiões, não cria distinções arbitrárias. Não diz que esta religião pode ser praticada, enquanto aquela não pode.

Se Kássio Marques está mesmo preocupado com a liberdade de culto no Brasil, poderia ter mencionado as agressões, sobretudo por parte de evangélicos, a que são submetidas religiões de origem africana país afora. Mas sigamos.

O ministro tentou fortalecer seu raciocínio mencionando a recente liberação de cultos presenciais por um tribunal da Califórnia. Na verdade, misturou alhos com bugalhos. No caso americano, o tribunal disse que o governo autorizava a realização de diversas atividades não essenciais, mas proibia rezar nos templos. Era uma diferenciação injustificada. Mas isso não se observava nas leis brasileiras questionadas pela Anajure. Nenhuma dessas leis permitia que as pessoas fossem ao cabelereiro, mas proibia que fossem rezar (como era o caso na Califórnia).

Kássio Marques também disse que a proibição de cultos presenciais é desproporcional. Mas com base em quê? Ele não cita um número sequer em sua sentença, sobre taxas de mortalidade, contaminação e ocupação de UTIs, para dizer se às restrições à locomoção nas diversas cidades que tiveram suas leis contestadas faziam sentido ou não. Ele tratou a proporcionalidade de maneira abstrata, sem indicar um critério para o raciocínio, o que não faz sentido.

Vamos exagerar, só para demonstrar o ponto: um decreto que proibisse cultos presenciais numa cidade com 80% de taxa de mortalidade e fila de espera de 500% nas UTIs seria “desproporcional”? Segundo a lógica de Kássio Marques, sim, porque ele trata da questão sanitária de maneira genérica, e não concreta.

O que vale para uma cidade rural de 10 mil habitantes provavelmente não vale para a metrópole. O que vale para um lugar onde o sistema de saúde entrou em colapso não se aplica a um município com pouquíssimos casos. E assim por diante. É por isso que prefeitos e governadores precisam ter autonomia para instituir regras locais de combate à pandemia. Mas o não-critério de proporcionalidade de Kássio Nunes atropela esse fato.

Será que Kássio Marques acredita nos seus próprios argumentos xexelentos? Pode até ser. Numa coisa ele acredita, sem dúvida nenhuma: naquela voz que lhe sussurra ao ouvido “agrade o chefinho, agrade o chefinho”.

Bolsonaro insiste que ele, com seu olhar onisciente, deveria definir como se enfrenta a Covid-19 em todo o Brasil, do Oiapoque ao Chuí. Acredita que uma única regra deveria valer, a da sua sabedoria (sim, isso é ironia). Como o Supremo não deixou que fosse assim, Capachão foi lá e fez o serviço em nome do presidente, ao menos no caso dos cultos religiosos.

É bem provável que o plenário do STF derrube a decisão de Kássio Nunes, que foi liminar. O triste é que ainda assim Bolsonaro vai sair ganhando, pois repetirá, numa daquelas lives de quinta-feira, que se fosse por ele, todo mundo teria passe livre para encontrar a morte onde quisesse: no templo, na igreja ou na esquina. Pena que os políticos e juízes malvados não deixam.

Não é a primeira decisão muito ruim de Kássio Nunes. Houve também o seu voto no julgamento sobre suspeição de Sérgio Moro no caso do triplex de Lula no Guarujá. Depois de pedir vista para se “assenhorar do caso”, ele se posicionou contra a suspeição, e até aí tudo bem. Mas o fez de modo canhestro, sem atacar minuciosamente os argumentos da defesa do ex-presidente e se embananando todo numa discussão técnica sobre a abrangência do habeas corpus no STF.

Kássio Nunes já deu provas de ser um jurista medíocre. Como calouro no STF, não fez o menor esforço para impressionar. Além disso, as questões mal explicadas sobre seus títulos acadêmicos fizeram com que ele chegasse ao tribunal com reputação menos que ilibada – e esse é um dos requisitos para vestir a toga.

Mas não tem jeito, ele está lá. Não é a primeira, nem será a última vez que coisa desse tipo acontece no Brasil. Com sorte, o ministro melhora, ao longo dos 26 anos em que pode permanecer no tribunal. Mas uma coisa tem de ser imediata: parar de votar por gratidão a Bolsonaro, que o levou a um posto onde ele não merecia estar.

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PS: É triste, mas tenho certeza que ainda vou achar em Brasília alguém que me lembre do Gnu Espacial, personagem do desenho dos Brasinhas do Espaço de que eu mais gostava quando tinha cinco anos.