LÁGRIMAS Pacientes recebem o primeiro atendimento na UPA do Vale dos Barris, em Salvador (BA), e são transferidos a hospitais especializados. O governador Rui Costa (abaixo) chora ao defender o lockdown no estado: “Quantas vidas vale uma bebedeira?” (Crédito:Divulgação)

Na contramão do mundo, enquanto a crise se agrava, Jair Bolsonaro negligencia a compra de vacinas, sabota o isolamento social e o uso de máscara, tentando transferir a crise para os governadores, criando uma cortina de fumaça para sua irresponsabilidade. É o principal culpado pela tragédia. E não foi por falta de aviso. Desde o início da pandemia, há um ano, técnicos e especialistas têm advertido para os perigos da Covid-19 e seus potenciais desdobramentos no País. O ex-ministro
Luiz Henrique Mandetta alertou o presidente logo no início que o número de óbitos poderia chegar a 180 mil se o governo
não interviesse. Hoje, essa cifra já ultrapassa 260 mil.

Mike Ryan, diretor-executivo de emergências da OMS, declarou que o Brasil vive uma “tragédia” e que a situação deve servir de lição ao mundo. “Nenhum outro país está lutando com números recordes de mortes e o sistema de saúde à beira do colapso. Ao contrário, várias outras nações que foram atingidas severamente caminham para a normalidade”, registrou o “New York Times”. O aumento de mortes em uma semana foi de 11%, em comparação aos sete dias anteriores. No mundo, ao contrário, a queda foi de 6%. Mais de 12% dos óbitos do planeta acontecem no Brasil. O infectologista Anthony Fauci, principal autoridade da força-tarefa criada pela Casa Branca contra a doença, disse que a situação no Brasil é “muito difícil”. O País está na contramão do mundo. E virou uma ameaça global, capaz de gerar variantes novas e ainda mais letais. No início do ano, as imagens do colapso na saúde no Amazonas rodaram o mundo e se tornaram um retrato do flagelo. Agora, o Brasil pode virar Manaus.

Divulgação

Em todas as regiões a situação se agrava. Várias capitais enfrentam colapso e ultrapassam a marca de 100% dos leitos de UTI ocupados. Hospitais viraram campos de guerra. Em Porto Alegre, os médicos passaram a escolher os pacientes com mais chances de sobreviver. Os hospitais privados de referência de São Paulo também atingiram a capacidade máxima. Imagens de funcionários horrorizados com as mortes e os dramas que enfrentam, impotentes, se multiplicam. “Estou triste, a população errou, os governantes erraram”, desabafa a médica Ilana Debarba Nedeff que atua em uma Unidade Básica de Saúde em Camboriú (SC). “Cheguei a um nível de exaustão física e mental enorme. Já tomava medicação antidepressiva e precisei aumentar a dose, senão não ia aguentar”, afirma. É impossível não se emocionar diante da tragédia que se repete em todo o País. É o que aconteceu com o governador baiano Rui Costa, no dia 1º, ao pedir que os cidadãos respeitassem as regras de isolamento. “Quantas vidas vale uma bebedeira?”, indagou o governador aos prantos. “Teremos as duas semanas mais duras e graves da pandemia. Serão as mais trágicas e difíceis para todos os estados brasileiros”, resumiu o governador João Doria, que colocou o estado de São Paulo na fase vermelha (apenas serviços essenciais funcionam e há restrição de circulação a partir das 20h).

Colapso no sul

O Distrito Federal adotou o lockdown, seguido da Bahia. Minas Gerais o decretou em 60 cidades. Em Uberlândia, havia 184 doentes na fila por um leito em UTI. Essa cidade, assim como Porto Alegre, corre o risco de viver o mesmo colapso que atingiu Manaus em janeiro, dada a curva de aceleração de casos. Porto Alegre é outra capital que vive um momento crítico, com ocupação de 102% dos leitos de UTI. Lá, pela primeira vez, o Hospital de referência Moinhos de Vento precisou alugar um caminhão refrigerado para guardar os corpos das vítimas. O governo da Bahia alugou outros 10 para manter os corpos de Salvador. Desde que Santa Catarina atingiu capacidade máxima de internação, em 21 de fevereiro, ocorreram 43 mortes na fila por leitos de UTI. Vários estados endurecem as medidas restritivas, incluindo Maranhão, Pernambuco e Rondônia. “O País inteiro está entrando numa situação de colapso”, diz João Gabbardo, ex-número dois de Mandetta e atual coordenador-executivo do Centro de Contingência de São Paulo. Pela primeira vez desde o início da pandemia, o Brasil inteiro apresenta piora de indicadores da Covid-19, registra a Fiocruz. “É a ponta do iceberg de um patamar de intensa transmissão”, diz a instituição. Dos 26 estados, 18 estão com mais de 80% dos leitos e UTI destinados à pandemia ocupados. A taxa de transmissão atingiu a marca de 1,13, de acordo com o Imperial College de Londres. É um aumento expressivo em relação à semana anterior, quando estava em 1,02.

TRAGÉDIA Funcionários retiram corpo de contêiner refrigerado em João Pessoa, Paraíba. Familiares se despedem de parente no cemitério Nossa Sra. Aparecida, em Manaus (abaixo) (Crédito:SANDRO PEREIRA)
Sandro Pereira

Transmissão acima de 1 significa falta de controle do avanço da doença. “Essa espiral enorme de subida, que alguns estados do Sul estão vivendo, ainda não chegou ao Sudeste”, alerta Mandetta. “Há elevação, mas não na espiral, que é a fase mais alta da transmissão”, diz. Isso pode estar na iminência de acontecer nos meses de março e abril, adverte. Opinião semelhante tem o neurocientista Miguel Nicolelis. Segundo ele, o mês de março deverá ser o pior momento. Técnicos do próprio governo estimam que o número diário de mortes pode bater 2 mil. Na quarta-feira, 3, essa cifra chegou a 1.910 e superou os EUA, quando se considera a proporção de habitantes por país e a média móvel (lá, o número de óbitos foi de 1.924). O Brasil está com há mais de 30 dias registrando mais de mil mortes diárias. Nicolelis alerta que a perda de vidas pode chegar a 500 mil. Supera o dobro do que as estimativas mais pessimistas apontam para os mortos causados pelo acidente de Tchernóbil, de 200 mil. Essa é a proporção do desastre brasileiro.

LUTA PELA VIDA Paciente recebe tratamento de fisioterapia no Rio de Janeiro. Cidade terá toque de recolher e restrições a bares (Crédito: Ricardo Moraes)

O que alarma a comunidade internacional não é apenas a escalada de casos no País. A falta de dados confiáveis sobre a circulação de novas variantes e o controle deficiente de viajantes têm levado outros países a se debruçar sobre a exceção brasileira. A chamada P.1, cepa detectada inicialmente em Manaus, circula sem qualquer tipo de controle. Pior: o próprio Ministério da Saúde promoveu a sua disseminação ao encaminhar pacientes do Amazonas para outros estados. Pesquisadores da Fiocruz descobriram que essa variante aumenta a carga viral em dez vezes. Um estudo da Universidade de Oxford e da USP concluiu que ela é até 2,2 vezes mais infecciosa que a tradicional, além de propensa a causar reinfecção. Na Europa, viajantes que passaram pelo Brasil já são alvo das autoridades. No Reino Unido, pelo menos seis casos de viajantes infectados com essa cepa provenientes do Brasil já foram confirmados. Um deles fez o teste e não preencheu seus dados pessoais, o que levou a uma caçada pelo país. O incidente ameaça a saída do lockdown dos britânicos. É uma demonstração de como a pandemia fora de controle já se transformou em uma crise de imagem do Brasil, que corre o risco de ficar isolado do mundo. “O Brasil é um laboratório a céu aberto para o vírus se proliferar e desenvolver mutações”, diz Nicolelis. Em Araraquara, uma das cidades mais atingidas no interior de São Paulo, a variante P.1 já é predominante, segundo o Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP). O município precisou decretar um dos mais rígidos lockdowns já vistos no País. Segundo infectologistas, essa cepa também já é predominante em Porto Alegre, além da própria capital do Amazonas.

ESPIRAL Para o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, “a espiral que alguns estados do Sul estão vivendo ainda não chegou ao Sudeste. Isso pode acontecer em maio e abril” (Crédito:Adriano Machado)

Diante desse cenário, o presidente continuou causando caos, ao invés de liderar o País. “Chega de frescura e mimimi, vão chorar até quando?”, declarou na quinta, 4. Dois dias antes, compareceu a um almoço “alegre” e “bem descontraído”, nas palavras do deputado mineiro Fábio Ramalho, que preparou um leitão para a ocasião. Bolsonaro minimizou a situação. “A Saúde no Brasil sempre teve seus problemas e a falta de UTIs era um deles”, afirmou. Ainda criticou a imprensa, dizendo que “criaram pânico”. Aliando desatino à desfaçatez, disse que as mortes por coronavírus interessam a “alguns setores da sociedade”. Para ele, alguns políticos preferem que os pacientes fiquem em estado grave nos hospitais. A demagogia com os problemas na saúde e as mentiras em série já marcaram Bolsonaro como o pior líder mundial na pandemia. Sistematicamente negou o trabalho dos especialistas, inventou tratamentos mágicos e fez a propaganda de placebos, como a cloroquina. Ele e seus seguidores foram os grandes responsáveis pela calamidade em Manaus, ao exigirem a liberação do comércio e propagarem a tese da “imunidade de rebanho”, que alimentou a disseminação de uma nova cepa ainda mais grave. “Não errei nenhuma”, o mandatário ufanou-se para apoiadores, rindo de suas teorias ruinosas. A insensatez continua. Programou para o sábado, 6, a viagem de uma comitiva de dez pessoas a Israel, liderada pelo chanceler Ernesto Araújo, para prospectar um spray milagroso contra os pacientes de Covid, um medicamento ainda em testes que nem passou pelo crivo da fase 1. Enquanto isso, a cloroquina importada às pressas encalha e os testes de PCR comprados pelo Ministério da Saúde perdem a validade em um galpão do aeroporto de Guarulhos. Ao mesmo tempo, o programa de vacinação continua sofrendo com a falta de imunizantes.

NAÇÃO PÁRIA “Março deve ser o pior mês. O Brasil pode colapsar como um todo. Transformou-se em um problema mundial, um pária”, diz o neurocientista Miguel Nicolelis (Crédito:José Luiz Somensi)

Ministério sem vacinas

O Ministério da Saúde não comprou nenhuma dose da única vacina que já tem aprovação definitiva da Anvisa, o da Pfizer. Somente após o governador João Doria anunciar a intenção de comprar 20 milhões de doses do imunizante da Pfizer, assim como 20 milhões da Sputnik V, a pasta da Saúde começou a se movimentar para adquirir os imunizantes da Pfizer e da Janssen — e exigiu que as negociações excluíssem estados. “Tem idiota que diz que vai comprar vacina. Só se for na casa da tua mãe”, desafiou Bolsonaro. Referia-se aos governadores. Mostrou novamente que sabota a imunização por cálculo político. Mesmo se a aquisição do Ministério for efetivada, não será possível frear a escalada atual da pandemia. Essas doses só começariam a chegar no segundo semestre. Doria, além de governadores e prefeitos pelo País, são assim obrigados a driblar a administração federal. Movimentam-se após a aprovação da lei que autoriza estados e municípios a comprarem vacinas sob certas condições, na última terça, 2.

EXPLOSÃO Sidney Klajner, presidente do Hospital Albert Einstein: “Ultrapassamos o pico de internações e vemos uma nova explosão em todo o País. As novas cepas são mais transmissíveis” (Crédito:GABRIEL REIS)

Já o presidente continua a oferecer soluções fáceis e atalhos espertos para driblar o trabalho árduo da ciência e a necessidade de mostrar uma gestão eficiente, o que até agora não exibiu em nenhuma área. Nega as suas obrigações, ao praticar a cultura da desonestidade e terceirizar responsabilidades. Agora, procura criar um conflito federativo ao atacar governadores que têm representado a única oposição efetiva ao desatino federal. Com esse objetivo, Bolsonaro divulgou dados distorcidos sobre repasses de verbas da União aos estados para insinuar que repassou verbas, mas elas não foram usadas como deveriam. “Daqui para frente o governador que fechar seu Estado, o governador que destrói emprego, ele é que deve bancar o auxílio emergencial”, blefou. Desagradou até aliados. Dezesseis governadores retrucaram os números enganosos e reclamaram do tom bélico. Já a ministra Rosa Weber, do STF, atuou para conter a irresponsabilidade. Decidiu que o Ministério da Saúde deveria voltar a custear leitos de UTI em São Paulo, Bahia e Maranhão. Em plena ascensão da pandemia, a pasta de Eduardo Pazuello tinha reduzido o número de leitos bancados pelas verbas emergenciais aprovadas em 2020. “No que depender de mim, nunca teremos lockdown”, repetiu o mandatário.

ALARME Jornais como o “New York Times” apontaram que o Brasil virou um risco para a expansão global da Covid-19

“Tínhamos uma oportunidade de dar uma resposta muito boa para a pandemia, mas quebraram o pacto federativo. É como se não tivéssemos sistema nacional de saúde”, lamenta Mandetta. “Estamos totalmente à deriva”, desabafa. Na falta de coordenação nacional, resta aos estados e municípios agirem para superar o desvario do presidente. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) defende a adoção imediata do lockdown em locais com ocupação de UTIs acima de 85% e toque de recolher nacional, das 20h às 6h. É a única solução apontada por especialistas para interromper a propagação. É o que diversos países fizeram com sucesso, como Reino Unido e, mais recentemente, Portugal. E é o que o Brasil precisa fazer, superando os obstáculos criados por um presidente que usa o risco econômico como anteparo para uma política genocida. No final, ele está ceifando ambos: o futuro e a vida.

Colaborou Mariana Ferrari