14/02/2019 - 20:30
O primeiro olho no olho com Ricardo Boechat ocorreu há 11 anos. Caco Alzugaray tomou a iniciativa de convidá-lo para compor o time de ISTOÉ e marcamos um almoço. Ele ouviu atentamente a proposta, teceu comentários ácidos, outros bem-humorados e todos sempre embasados em boas informações sobre as então embrionárias candidaturas presidenciais de José Serra e Dilma Roussef. Só na hora do café, Boechat voltou ao tema de nosso encontro. — Adoro a possibilidade de uma coluna em ISTOÉ. Quero ter a coluna na revista, mas, tenho aversão a escrever. Só pensar na obrigação de elaborar um texto final me apavora, disse, dirigindo-se a Caco, a mim e a Carlos José Marques, diretor editorial da Três.
Acertamos, então, em também receber Ronaldo Herdy na equipe, certamente seu mais antigo, competente, discreto e fiel colaborador. Boechat, no entanto, insistia em descrever uma enorme paúra para redigir um texto final. O fazia com uma naturalidade impressionante. E claro, todos víamos ali a criação de um espectro colocado na mesa para participar da conversa. Para encurtar a história. Boechat teria a coluna, me mandaria as informações em forma bruta e o texto final seria elaborado na redação. Passadas uma ou duas semanas recebo a primeira coluna. Precisa, sem a necessidade de nenhuma alteração.
Minutos depois Boechat telefona: — Diga meu príncipe (forma como passou a se referir a mim até a última semana, e certamente o fez com tantos outros), o que achou da coluna?, perguntou. Respondi o chamando de mestre (como faço sempre quando estou diante daqueles capazes de ensinar a cada encontro). Elogiei o texto e defini a coluna como muito interessante. — Porra príncipe! Interessante é bumbum de elefante!, afirmou Boechat antes de soltar sua franca risada e desligar o telefone. Fiquei matutando sobre a resposta do careca. Quinze ou vinte minutos depois recebo outra coluna. Basicamente a mesma, com três notas diferentes, absolutamente exclusivas. Vieram a se tornar pauta dos principais jornais na semana seguinte. Ainda antes de mudar a tela o computador atendo o telefone. — Príncipe, e agora como está a coluna?, pergunta Boechat. — Mestre, essa está gigante, disse-lhe. — Como assim?, reagiu Boechat começando a rir. Respondi que gigante era tromba de elefante. Terminamos a conversa gargalhando.
Com esse diálogo o mestre com quem tive a honra de conversar continuamente na última década passou a me ministrar seus ensinamentos. Interessante não é elogio algum e, em jornalismo, não significa nada. Ninguém vai ao zoológico para ver a bunda do elefante. Nesse tempo todo não lembro de precisar mexer na Coluna do Boechat uma única vez. Claro, algumas delas foram interessantes, mas a maioria trouxe histórias e informações que só um profissional independente, ético e de caráter irretocável pode obter. São características indispensáveis para quem precisa ser contundente e agressivo em suas colocações. “Sou grosso e até escroto, mas só com os do mal. Não importe de onde eles venham, de que partido eles sejam ou que ideologia professem. Por isso, meus patrões precisam ter fortes departamentos jurídicos”, disse-me algumas vezes o mestre quando julgava-me comedido demais em algumas matérias. E isso lembrava o que certa vez vaticinou Domingo Alzugaray: “jornalismo de qualidade dá processo. Mas processo que ganhamos”. Nascido em Buenos Aires, o careca admirado por taxistas, respeitado pelos poderosos e odiado pelos “do mal” trazia o DNA do milongueiro.
No Rio adquiriu a mesma alma carioca presente em brilhantes indolentes como Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Zeca Pagodinho e tantos outros. Da mãe herdou um espírito destemido e aventureiro e do pai diplomata a capacidade de aglutinar. Junta-se a esses ingredientes uma grande pitada de caráter, algumas gramas de generosidade e têm um ser único como foi Ricardo Boechat. Costumava pegar carona com motoboys para fugir do trânsito paulistano e chegar no horário aos eventos de Brasileiros do Ano promovido por ISTOÉ. Em 2016 foi homenageado. Depois de receber o troféu sentou-se à mesa onde estávamos eu, a doce Veruska e alguns editores da revista. Recebeu um telefonema e saiu às pressas. Acabou esquecendo o prêmio na mesa. Levei-o para redação e liguei para combinar nova entrega do troféu. –Príncipe, que merda! Não se pode esquecer algo assim. Vou mandar buscá-lo já. Não adianta levar para sua estante porque meu nome está gravado nele. Demos novas risadas. Hoje, me arrependo de não ter levado o prêmio do careca para minha casa. Depois de mais de 35 anos vivendo intensamente nas redações, vejo em Ricardo Boechat o colega mais próximo dos ensinamentos de Claudio Abramo, que também insisto em procurar seguir: “O jornalismo e, antes de tudo e sobretudo, a prática diária da inteligência e o exercício cotidiano do caráter”. Isso era Ricardo Boechat.