Há décadas o Brasil cultiva a imagem de potência do futuro. A nação exerceu um inteligente “soft power” nos últimos 50 anos com sua força econômica e riqueza natural. Não mais. Pouco mais de dois anos de governo Bolsonaro foram suficientes para isolar o País e jogar sua reputação na lama, como uma Nação de quinta categoria. A percepção predominante é de que o País perdeu o bonde da história. Não conseguirá entrar no clube dos países ricos nem resolver seus graves problemas estruturais. Para os brasileiros, não se trata apenas de ter as portas fechadas em quase todos os países. Eles agora são vistos como cidadãos de segunda classe, e passaram a sofrer com a xenofobia e o preconceito no exterior.

QUADRILHAS Ricardo Salles visita Cachoeira do Aruã (PA) para apoiar acusados da maior extração ilegal da história. O delegado da PF foi demitido (Crédito:Ricardo Salles MMA)

Não é apenas pela resposta catastrófica à emergência na Saúde que o prestígio do País está comprometido. Na área climática, em que sempre foi uma referência, o País passou a ser antiexemplo. A Cúpula do Clima, organizada por Joe Biden com as principais nações do planeta, mostrou o Brasil como vilão mundial. Em seu maior teste internacional, Bolsonaro moderou a pregação negacionista, mas o esforço foi em vão. Chegou às vésperas da reunião, nos dias 22 e 23, como um corpo estranho. Num discurso cínico, até com gravata verde, apresentou o Brasil como vanguarda na luta ambiental e destacou a preocupação com a população local e os índios. Comprometeu-se com as mesmas metas já estabelecidas no Acordo de Paris (e que só devem ser cumpridas pelos próximos governos) e prometeu duplicar os recursos para fiscalização. É um deboche. Apenas no ICMBio, essas verbas caíram 47% desde o início de sua gestão.

Boiada não cola

No seu governo, o desmatamento atingiu níveis recordes. Ele tentou reproduzir na frente externa a manobra que o ministro Ricardo Salles executa no País, enfraquecendo a fiscalização e a regulação enquanto quadrilhas expandem sua atuação, dando a aparência de compromisso ambiental. É a “passagem da boiada”, anunciada em reunião ministerial exatamente um ano antes. Mas a boiada não passou para os estrangeiros. Antes de Bolsonaro discursar, Biden se levantou, mostrando que não o considerava um debatedor vital. Depois, o porta-voz americano declarou que o apoio ao brasileiro dependerá “de planos sólidos, da execução do trabalho e de um foco implacável nos resultados”. Antes da cúpula, Bolsonaro patrocinou uma chantagem diplomática que buscava tirar US$ 1 bilhão dos americanos para diminuir em 40% o desmatamento no próximo ano, mesmo que R$ 2,9 bilhões do Fundo Amazônia, para esse fim, estejam parados por culpa do governo. O embuste falhou, até porque ocorreu na sequência de outro golpe. O novo diretor-geral da PF indicado por Bolsonaro demitiu o superintendente no Amazonas que havia acabado de entrar com uma notícia-crime no STF contra Salles, por tentar proteger os criminosos responsáveis pela maior apreensão de madeira ilegal da história do País.

GESTO Crítico de Bolsonaro, o presidente Joe Biden se levanta antes do discurso do brasileiro na Cúpula do Clima (Crédito:Divulgação)

O governo agiu de forma descoordenada e em negação para o evento patrocinado por Biden. “A gente não tem que ser mendigo nisso aí, vamos colocar a coisa muito clara”, disse o vice Hamilton Mourão, que foi excluído das negociações prévias. Salles, que é considerado o maior entrave para os investimentos no País, recebeu um dia antes apoio de outros integrantes do governo — todos sem máscara —, enquanto as redes bolsonaristas dispararam a hashtag #ficasalles, para tentar reagir à enxurrada de críticas nas redes sociais. O próprio ex-presidente Fernando Collor deu um diagnóstico pessimista para a condução do assunto no governo: “O Brasil corre o risco de virar um pária internacional”. Enquanto Bolsonaro patrocinava mais um vexame internacional, a sociedade reagia. Três dias antes do evento, 24 dos 27 governadores enviaram carta ao embaixador Todd Chapman mostrando comprometimento com a emergência climática global. Enquanto isso, um grupo de 36 artistas do Brasil e dos EUA enviou uma carta a Biden pedindo que não fechasse acordo com o presidente brasileiro antes de uma efetiva redução no desmatamento na Amazônia. Assinaram o documento estrelas como Alec Baldwin, Joaquin Phoenix, Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo e a cantora Katy Perry.

O Brasil atravessa a maior regressão econômica e social da história. Vários dados simultâneos contribuem para desgastar a imagem do País

PROVAÇÃO Para o papa Francisco, o Brasil vive “uma das provas mais difíceis de sua história” (Crédito:Filippo Monteforte)

Ao lado do meio ambiente, a saúde é a principal fonte de desgaste internacional. As atitudes negacionistas de Bolsonaro levaram o País à liderança no número diário de mortes. Já são quase 390 mil óbitos. O presidente transformou o Brasil numa espécie de “vala sanitária que ameaça o mundo”, diz o cientista político Guilherme Casarões, da FGV-EAESP. Para ele, esses dois temas são de extrema preocupação internacional e levam à corrosão da imagem internacional do País. Esse é um desafio novo. Enquanto o País patinava em crises econômicas, não inquietava a comunidade internacional. Agora, o jogo é outro. Num exemplo de como isso tem consequências práticas, a crise sanitária fez o mundo fechar as fronteiras para os brasileiros. Atualmente, só oito países estão abertos aos cidadãos com passaporte nacional, todos periféricos. Na América Latina, apenas México permite a entrada. Até os caminhoneiros estão sendo barrados na Argentina e no Chile. Só passam após apresentar testes negativos de Covid, o que prejudica as exportações.

Há vários dados simultâneos que contribuem para desgastar a reputação do País em nível global. O Brasil atravessa a maior regressão econômica e social da história e está se afastando do clube dos países mais ricos. Na contramão da economia mundial, é a única grande economia com desaceleração do crescimento no primeiro trimestre, segundo a OCDE. De sexta maior economia, em 2011, hoje ocupa a 13ª posição, pelo critério de PIB em dólares. E Bolsonaro entragará até o final deste ano uma economia menor daquela que herdou do governo Temer. Na sua gestão, o País concluiu a segunda década perdida desde a democratização, com queda na renda per capita de 8%. No ranking do FMI, o Brasil caiu da 77ª posição para a 85ª entre 191 países. Segundo um estudo da FGV, o derretimento do real frente ao dólar só não foi pior do que a lira turca, no período de 12 meses encerrado em março. E isso num momento em que o dólar está enfraquecido. Apenas quatro entre 31 países analisados sofreram desvalorização. Entre as nações em desenvolvimento, o real é a moeda mais barata, segundo o Bank of America.

Com a antidiplomacia do governo Bolsonaro, a possibilidade de o Brasil influir em grandes organismos internacionais ou integrar blocos comerciais também foi minada. O governo americano vai barrar a pretensão brasileira de entrar na OCDE se a política ambiental de Bolsonaro não mudar. E a zona de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, que era a principal aposta do governo Bolsonaro para impulsionar o crescimento a médio prazo, já faz água pelos ataques do brasileiro aos líderes europeus, que estão cada vez mais pressionados em seus países para seguir compromissos climáticos. O Brasil era o condutor do Mercosul. Agora, virou um estorvo para os vizinhos, que preferem negociar sem o parceiro problemático. Historicamente, é a primeira vez que o Brasil deixa de exercer sua liderança natural na América do Sul.

EM PORTUGAL Estudantes brasileiros protestam contra a discriminação, em 2019 (Crédito:Divulgação)

Discriminação

Na educação, que é o instrumento mais eficiente para diminuir as desigualdades, as notícias também são desoladoras. O estrago precede Bolsonaro. O Brasil teve um dos dez piores desempenhos do mundo em matemática no índice adotado pela OCDE para medir o setor no último PISA, divulgado no final de 2019. Além de ficar estagnado no ranking de leitura, o País caiu de posição em ciência. Com o atual governo, esse quadro vai ficar ainda mais dramático. O desmanche em curso no Ministério da Educação, que já está com seu quarto titular, indica que haverá um resultado ainda mais sofrível quando o exame for retomado em 2022. A desvalorização sistemática da produção acadêmica nacional alarma até os cientistas do exterior. Em carta com mais de 200 assinaturas, pesquisadores de pelo menos 20 países alertaram contra os ataques à ciência no País e a má condução na pandemia por parte de Bolsonaro. O documento inclui três prêmios Nobel. Aos olhos do mundo, o Brasil está sem rumo e perdendo os seus valores.

MÁ REPUTAÇÃO Jornais internacionais retratam os ataques ambientais de Bolsonaro e a ameaça sanitária que o País representa (Crédito:Divulgação)

A própria democracia está sob ataque. Um relatório da organização Repórteres sem Fronteiras, divulgado em Paris no último dia 20, mostrou que o Brasil caiu quatro lugares no ranking de liberdade de imprensa global. Passou à 111ª posição entre 180 países, por causa dos ataques de Bolsonaro e seus filhos, que “insultam e difamam jornalistas e meios de comunicação quase diariamente”. Segundo o relatório, “seguidores do presidente mancham as redes sociais com linchamentos on-line de profissionais da mídia e veículos de comunicação. Além de incitar o ódio, a estratégia busca evitar que estas autoridades tenham que prestar contas à sociedade”. Para a ONG, o País passou a ter uma “situação difícil” para jornalistas.

A imprensa internacional registra a derrocada na reputação do Brasil. Destaca as crises ambientais e na saúde, mas não só. O Washington Post registrou que Bolsonaro ajudou a agravar a pandemia no mundo com sua “assombrosa incompetência”. A conservadora revista Le Point, da França, ressaltou a sua tendência autoritária e resumiu o beco sem saída em que o País se meteu: tinha tudo para se sair bem na crise (população jovem, experiência com epidemias, indústria farmacêutica e sistema universal de saúde), mas está face a um colapso econômico e social. É o sentimento generalizado internacional.

Para os brasileiros que vivem no exterior, a má reputação já gera xenofobia e preconceito. Na França, a hashtag #varientbrésilien (variante brasileira) inundou as redes sociais após o primeiro-ministro Jean Castex anunciar a proibição de voos do Brasil e ironizar o uso local de cloroquina. Os cientistas franceses temem que a cepa do coronavírus surgida em Manaus se espalhe no seu país. Nas redes sociais, o risco virou um ataque aos brasileiros. Em programas de TV, o Brasil foi tratado como “Fukushima sanitária”. Estereótipos sempre associados ao País, como Carnaval e mulheres seminuas, agora retratam uma ameaça sanitária. Os relatos são inúmeros. Há 26 anos na França, um técnico em informática brasileiro que prefere não se identificar chocou-se quando um grupo de amigos franceses compartilhou uma imagem ofensiva em um grupo de WhatsApp. Ele disse que os amigos sabem que é brasileiro, mas parecem não se importar com o fato. Com residência em Lyon, também foi “fortemente desaconselhado” por sua empresa a vir ao Brasil, seja a trabalho ou de férias, enquanto a situação por aqui estiver fora de controle. Em Portugal, a pandemia piorou um preconceito que já acontecia. O professor Bruno Freitas, que mora em Porto, diz que sempre ouve de colegas relatos de discriminação. “Os portugueses sempre tocam no assunto da doença”, diz.

Esse estigma é uma espécie de maldição cultivada pelo próprio clã Bolsonaro, que no início da pandemia associou a China ao coronavírus, além de tripudiar da Coronavac (“vachina”). “Classificar variantes a partir de nacionalidades já é uma forma de preconceito. Essa é a cepa do Brasil, essa outra, da África do Sul e aquela é de outra nação. Quais países não possuirão nenhuma variante?”, indaga o antropólogo Roberto DaMatta. Para ele, a condução desastrosa na crise ampliou preconceitos que já eram imputados aos brasileiros, como serem preguiçosos e vagabundos. “Mas não acredito que seremos tachados de contagiosos no futuro. Eu já sofria preconceito por ser estrangeiro nos EUA nos anos 1960, pelo simples fato de não ser americano. Mas quando se coloca o estrangeiro como portador de uma doença mortal, as coisas pioram”.

O mundo age com um misto de pena e preocupação. A OMS já classificou o surto brasileiro de “inferno furioso”, prometeu ajudar na liberação de vacinas, mas sempre ressalta a importância de medidas de prevenção, como o isolamento social — o que Bolsonaro continua combatendo. Até o papa Francisco disse que o Brasil enfrenta “uma das provas mais difíceis de sua história”. Dificilmente a imagem negativa será recuperada no curto prazo. O presidente desde o princípio representou um risco para os interlocutores internacionais, por ser um autocrata nos moldes dos EUA de Donald Trump, das Filipinas e da Hungria, lembra Casarões. “Ele é a cereja do bolo da derrocada da imagem brasileira”, afirma. No início, era considerado uma ameaça à estabilidade da América Latina. Agora, é tratado como um fator de instabilidade global. Iludido, Bolsonaro ainda se alimenta da mitologia do Brasil grande criada pelo regime militar, mas conseguiu na prática tirar o País da liderança mundial. Se continuar assim, vai firmar a imagem do Brasil como uma das antigas nações do terceiro mundo que lutam eternamente para fugir do subdesenvolvimento — e nunca conseguem.

Colaborou Taísa Szabatura