Luiz Inácio Lula da Silva vive dias de êxtase. As pesquisas o fazem sonhar. O retorno ao poder nunca foi uma realidade tão palpável. Os dias de confinamento compulsório, preso numa delegacia do Paraná, por acusações de malversação de dinheiro público, o fizeram acreditar que era o fim da linha. Muito embora acalentasse a ideia de ser reverenciado pelos eternos seguidores. Hoje, mais grisalho, até mais abatido, uma voz rouca que já despertou especulações sobre a saúde, casado novamente e percebendo a volta dos bajuladores, Lula vislumbra o que considera uma nova travessia do rubicão. Acredita estar dando a volta por cima.

Quer fazer diferente. Promete nem mesmo tentar a reeleição. Acredita que quatro anos serão suficientes para o projeto que tem em mente e com o qual almeja reservar um lugar na história. Mas nada tira dele a pecha de radical nos corações e mentes daqueles que temem suas ideias. Especialmente empresários e banqueiros. Curioso. Justo eles que foram brindados com acenos generosos a suas demandas.



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Lula, “o cara”, na visão simbólica do ex-presidente dos EUA, Barak Obama, deixou o governo do Brasil com crescimento na casa dos 5%, que nunca mais voltou a se repetir. Sim, também entregou a monstruosidade escandalosa do mensalão, abriu as portas para o propinoduto da Petrobras, mas deixou as melhores lembranças no público cativo de baixa renda. A esse concedeu uma política social que fez história e segue sendo referência mundial. Os pobres e desassistidos tratam Lula como “paizinho”.

Ninguém tira deles a convicção de que o demiurgo de Garanhuns foi o único que lutou genuinamente para reparar suas necessidades, abrandando a indolente chaga da miséria que secularmente castiga os grotões deste País continental. No momento, com o avanço avassalador da fome, que já verga ao desespero de vida ao menos 33 milhões de pessoas e outras tantas em condição de insegurança alimentar, Lula replica o papel de salvador da pátria. Nações carentes, desigualmente formadas na pirâmide da renda, padecem desse mal de buscar sempre redentores, arrivistas ou não. A Argentina de Perón, a Nicarágua de Ortega ou mesmo as Filipinas de Ferdinando Marcos que o digam.

Se o petista confirmar a vitória no dia 30, o lulismo se mostrará definitivamente enraizado no País. O seu líder prepara a volta ao poder na eleição mais importante desde a redemocratização, quando a própria Constituição de 1988 é colocada à prova. Por isso, ele mesmo apresenta sua eleição como uma escolha entre a a civilização e a “barbárie”. O atentado contra a Polícia Federal de um aliado de Bolsonaro, o ex-deputado Roberto Jefferson, no último dia 23, mostrou a gravidade do momento e o “grau de insanidade que o País alcançou”, aponta o ex-presidente. Mas ele não mostra preocupação com a aceitação do resultado das urnas. “Bolsonaro terá de aceitar o resultado das urnas. Simples assim!” O petista ressalta que o atual presidente alimenta conflitos e divisões no País, em vez de trabalhar pela paz, e que tem consciência de que terá de trabalhar e conversar muito com a sociedade para o País voltar a crescer. “Hoje eu sou mais experiente.”

NA CORRIDA Lula dá início à sua campanha em porta da fábrica da Volkswagen no ABC, em São Paulo, em 16 de agosto (acima). Lula conversa com a Rede de Rádios RDR em Maringá, no Paraná, durante a campanha (Crédito:Ricardo Stuckert)

 

A importância da vitória de Lula para desanuviar o ambiente político e aliviar a tensão institucional gerou um forte apoio a ele, na reta final, de ex-presidentes e de ex-ministros do STF. Fernando Henrique Cardoso e José Sarney, antigos adversários, apoiaram sua candidatura no segundo turno. Os ex-ministros do Supremo Carlos Ayres Britto, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa, também. Rivais de Lula no primeiro turno, Ciro Gomes e Simone Tebet fizeram o mesmo. “Reconheço em Lula o que não reconheço no atual presidente: um democrata. O que está em jogo é muito maior do que aquilo que nos divide e nos diferencia. É a democracia, o respeito à Constituição, o avanço em políticas públicas”, disse Tebet.

A eventual vitória tornará Lula o primeiro presidente a governar o País por três mandatos obtidos nas urnas, depois de uma reviravolta dramática em que sua sucessora e aliada sofreu impeachment e ele enfrentou uma série de inquéritos na Operação Lava Jato. Passou 580 dias preso antes de ter as penas anuladas, acusando a força-tarefa de Curitiba de motivação política. Agora, quando seus dois principais algozes no Judiciário abraçaram o bolsonarismo e entraram para a política, o ex-presidente tem a chance de dar a volta por cima como um dos líderes mais longevos da história do País, e com prestígio internacional.

Líder nas pesquisas

O ex-presidente chega à reta final liderando as pesquisas de opinião. Desde que anunciou sua candidatura mantém a dianteira, mesmo diante das bilionárias benesses eleitoreiras que Bolsonaro criou driblando a legislação eleitoral. A guerra suja nas redes sociais invadiu o programa eleitoral na TV, e o PT entrou nessa disputa para evitar que o bolonarismo ocupasse todo o ciberespaço com fake news. A Justiça conseguiu ser mais eficiente do que em 2018, como o próprio episódio de Roberto Jefferson ilustra, apesar de não ter conseguido evitar a desinformação.

Agora, a grande interrogação em um eventual governo do PT é sobre sua política econômica. A Bolsa e o dólar oscilaram ao longo da campanha mostrando que o mercado teme o triunfo de Lula. O forte intervencionismo e a política de “campeões nacionais” do governo Dilma explicam em parte essa reserva, mas ela se deve especialmente ao risco de descontrole nas contas públicas. O ex-presidente, no entanto, disse que sempre praticou a responsabilidade social e que em seus dois governos diminuiu a relação dívida/PIB. O teto de gastos, segundo ele, já tinha acabado no governo Bolsonaro, e a própria pandemia provou que essa âncora fiscal não funciona.

O nome do seu ministro da Economia seria essencial para tranquilizar os agentes, mas o petista se recusou a divulgar quem será o novo titular da pasta. “Se ganhar, começo a discutir o ministério às 20h de domingo”, já declarou. Ele tem sido cuidadoso para evitar “sentar na cadeira de presidente antes do tempo”.

NO NORDESTE Lula e a esposa Janja (à esq.) ao lado do vice Geraldo Alckmin e sua esposa Lu em campanha em Serra Talhada, em Pernambuco (Crédito:Ricardo Stuckert)

Mas, nos bastidores, já há cotados para o primeiro escalão: Alexandre Padilha e Wellington Dias (para a Casa Civil ou soluções caseiras para a Fazenda), André Lara Resende (Fazenda ou Planejamento), Aloizio Mercadante (Relações Exteriores), Miriam Belchior (para cuidar do novo PAC, mas não deseja ir para o Planejamento), Marina Silva (Meio Ambiente), Arthur Chioro (Saúde), Flávio Dino (Segurança), Jacques Wagner (Defesa), Gabriel Chalita (Educação) e Marco Aurélio Carvalho (AGU ou Justiça). Também lidera a bolsa de apostas Simone Tebet (Agricultura ou Educação, que seria a preferência dela). Mas, no caso da senadora do MDB, Lula já disse que precisará antes negociar com o partido dela, que se dividiu no segundo turno.

Ex-colaborador e depois adversário de Lula, Henrique Meirelles também é um dos nomes cotados para a Fazenda. Ele tem ocupado um espaço especial nas propostas da área, até porque o petista tem evitado vazamentos de sua equipe. Em evento concorrido na última segunda-feira, 24, na PUC-SP, o ex-ministro esteve presente a convite de Lula e foi citado por ele. Com essa interlocução privilegiada, Meirelles tem dado entrevistas a jornais do exterior, como o “Financial Times”, “avalizando” ideias para um futuro governo do PT. A principal é de uma “licença” (waiver) para o governo gastar em 2023 até R$ 100 blhões fora das regras orçamentárias, já que as benesses criadas pelo governo e aprovadas pelo Congresso vão impor um rombo nos cofres públicos calculado em até R$ 430 bilhões, segundo estudo do Ibre-FGV.

Ele é ouvido no mercado, já que é o pai do teto de gastos. Defende que as propostas sociais de Lula podem ser aplicadas com responsabilidade fiscal e já teria sugerido ao petista replicar a reforma administrativa implantada quando foi secretário da Fazenda do governo de São Paulo, privatizando estatais que perderam finalidade. Isso soa como música para os investidores, mas causa incômodo entre economistas ligados ao PT. Lula tem se aproveitado da influência do seu ex-presidente do Banco Central para diminuir resistências entre empresários, e muitos de sua equipe consideram que Meirelles virou um candidato natural ao comando da Economia.

Herança maldita

“Se vencer, Lula receberá uma verdadeira herança maldita no campo fiscal decorrente da maneira pela qual Paulo Guedes e Bolsonaro administraram o País, seja durante a crise, seja no período eleitoral, quando o ministro esqueceu suas visões liberais e trabalhou para reeleger o atual presidente. Quem subir a rampa do Planalto vai encontrar o Tesouro Nacional provavelmente na pior situação da história”, prevê Maílson da Nóbrega, ministro no governo José Sarney. Para o economista, Lula tenta seguir um caminho semelhante neste ano ao trazer para seu lado, além de Meirelles, nomes como Pérsio Árida e Armínio Fraga. De fato, a adesão dos pais do Plano Real nas últimas semanas aumentou a confiança em um programa econômico equilibrado. “Minha aposta é que Lula não fará um programa irresponsável”, diz Maílson.

COTADO Ex-ministro Henrique Meirelles defende uma “licença” para o governo gastar acima do teto em 2023: seu nome cresce entre as apostas para a Fazenda (Crédito:Eduardo Knapp)

O governo poderá emplacar a reforma tributária que unifica cinco impostos e está pronta para votação no Congresso, já anunciou Geraldo Alckmin, o candidato a vice. “Essa PEC poderia ter sido aprovada por Bolsonaro, mas Guedes a boicotou, porque queria a CPMF. Os estados estão titubeando, mas, com uma boa liderança, vão concordar de novo”, pontua Nóbrega. Já Lula apenas defende uma reforma com tributos mais justos e simples. “Quero incluir o pobre no orçamento e os muito pobres no imposto de renda”, informa. Se Lula seguir Alckmin, poderá destravar uma reforma essencial para aumentar a produtividade que está emperrada há décadas no Congresso. O candidato a vice também dá outra pista essencial sobre o que se poderá esperar da economia, repetindo o tripé que Lula vocaliza: “Credibilidade, estabilidade, previsibilidade”. Falta, naturalmente, convencer os players do mercado, como se viu nos últimos dias com a gangorra na Bolsa.

Já os programas sociais, uma marca de Lula, serão turbinados. O salário mínimo deverá voltar a ter aumentos reais. Esse foi um dos trunfos da campanha do petista na reta final da corrida eleitoral, especialmente após a revelação de que Paulo Guedes pretendia acabar com o seu reajuste pela inflação passada, assim como o reajuste automático das aposentadorias (o atual ministro também vinha planejando retirar a dedução com saúde e educação do IRPF, o que ajudou a colocar Bolsonaro nas cordas nos últimos dias). Segundo Lula, o atual Auxílio Brasil deve manter seu reajuste no próximo ano, e cortes na Saúde e na Educação serão revertidos. O histórico de seus governos autoriza essa expectativa, que é renovada na entrevista abaixo. Também já anunciou que salários até R$ 5 mil serão isentos de imposto de renda.

COM O POVO O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é recepcionado por populares em Inhúmas, no Piauí, em 2017 (Crédito:Divulgação)

Uma das inflexões mais óbvias com um governo Lula ocorrerá na área externa. Bolsonaro se tornou um pária internacional ao se aliar a extremistas de direita, insultar líderes europeus, questionar a eleição do presidente Joe Biden e, principalmente, com sua política de desmanche ambiental. O petista, ao contrário, ainda goza de prestígio fora do País mesmo após seu período na prisão. Isso pode ser útil para fortalecer parcerias comerciais e evitar prejuízos ao agronegócio, que poderia enfrentar barreiras ambientais. Ex-embaixador nos EUA e presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior, Rubens Barbosa lembra que o mundo já ensaia medidas para forçar o comprometimento brasileiro com a preservação da Amazônia — o Parlamento Europeu aprovou, em setembro, uma norma para obrigar os importadores da União Europeia a atestar o cumprimento de exigências ambientais por parte dos fornecedores. “Colocar o Meio Ambiente no centro da política externa já despertaria uma reação pela simbologia”, diz. A reaproximação de Lula com Marina Silva atesta que a agenda ambiental será prioritária.

Apoio de líderes pelo mundo

António Costa, primeiro-ministro português, declarou: “O mundo precisa de um Brasil forte, que participe das grandes causas, para combater a desigualdade, lutar pela saúde, enfrentar as alterações climáticas. O Brasil e o mundo precisam de Lula”.

Pedro Sánchez, primeiro-ministro espanhol, diz que “é uma eleição decisiva para o futuro do Brasil” e que Lula “é uma voz imprescindível diante dos grandes desafios globais que nos unem”. Para ele, a vitória seria “dos progressistas do mundo inteiro”.

Alberto Fernández, presidente da Argentina, chamou Lula de “querido” nas felicitações que enviou pelo Twitter logo depois do primeiro turno e apresentou “sincero respeito ao povo do Brasil por sua profunda expressão democrática”

Papa Francisco disse em outubro, durante o encontro com Lula na visita ao Vaticano, que reza “a Nossa Senhora Aparecida para proteger e curar o povo brasileiro, para libertá-lo do ódio, da intolerância e da violência”, em aceno de apoio ao candidato

Divulgação

Gustavo Pietro, presidente da Colômbia, declarou em agosto que torcia por Lula, depois que o brasileiro enviou seu apoio a ele, que concorria com adversário populista, de extrema-direita, sofrendo atentados ataques e mesmo atentados.

Gabriel Boric, presidente do Chile, desejou “muito sucesso” a Lula e “um ótimo resultado nas eleições deste ano”. Em agosto, falou à revista Time que a América Latina deveria se unir em caso de resultado eleitoral não aceito, para evitar um golpe.

Emmanuel Macron, presidente francês, recebeu Lula como chefe de Estado em 2021, depois que sua mulher Brigitte foi violentamente ofendida pelo atual presidente brasileiro. Em abril deste ano, Lula manifestou seu apoio à reeleição de Macron.

Day after

Antes disso, falta consolidar a eventual vitória e garantir uma transição tranquila. Isso não está seguro. Entre ministros de Cortes Superiores, há apreensão com o day after das eleições. A perspectiva é a de que a diferença de votos entre Lula e Bolsonaro seja menor do que os 3,4 milhões contabilizados entre Dilma Rousseff e Aécio Neves em 2014. Por isso, acredita-se que, se o petista vencer, o capitão pensará em, como fez o tucano, contestar o resultado das urnas.

Não à toa, os presidentes de Poderes montaram uma “força-tarefa” para se contrapor a qualquer investida golpista. Como no primeiro turno, os presidentes do Congresso, Rodrigo Pacheco, e do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas, além de ministros do Supremo Tribunal Federal, devem acompanhar a totalização na sede do TSE no domingo e ladear Alexandre de Moraes na coletiva de imprensa prevista para o final do dia. Arthur Lira, que comanda a Câmara, planeja acompanhar o processo em Brasília junto a líderes dos partidos no Legislativo. “Se Bolsonaro investir na tese de fraude, acabaria sendo uma rebelião contra todos os Poderes”, ressalta um ministro, sob reserva.

Além disso, nesta sexta-feira, o TCU pretende colocar no ar um painel eletrônico com os resultados parciais da auditoria que verificou a compatibilidade entre resultados de 4.161 boletins de urnas, sorteadas para o exame, e os votos totalizados pelo TSE, a fim de impulsionar o sentimento de confiança no sistema eleitoral. “Até agora, estamos com mais de 70% do trabalho pronto. Fizemos quase 5 milhões de cruzamentos e houve um total de zero divergências em relação à base do TSE”, aponta um nome do tribunal que acompanha o passo a passo do procedimento. “As Forças Armadas ficaram com a broxa na mão, porque todos sabem que eles não acharam problema algum naquela ‘totalização paralela’, mas mantêm o suspense sobre o relatório para nutrir dúvidas, o que pega mal para eles”, emenda.

Se confirmar sua vitória, Lula enfrentará um Congresso majoritariamente de oposição, o que exigirá muita negociação para que as pautas do governo não sejam paralisadas. Fator essencial para isso é desmontar a armadilha do orçamento secreto, uma aberração que deu poderes desmedidos aos aliados do atual presidente pertencentes ao Centrão.

Igualmente difícil será a tarefa de pacificar a sociedade, depois de anos de polarização e extremismo. Derrotado, Bolsonaro seria de fato um líder da oposição pronto para contestar ainda mais as instituições. Conta a favor de Lula a disposição de ampliar o arco de alianças e se aproximar do centro. “Nosso governo não será um governo do PT. Precisamos fazer um governo além do PT”, diz ele. O petista acha que o bolsonarismo, o ódio e o fanatismo vão continuar por um tempo, mas conta com sua habilidade de negociação para uma reconciliação da sociedade.

O professor de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco Adriano Oliveira afirma que o Brasil precisa se desprender do clima de tensão impulsionado pelo bolsonarismo e da instabilidade decorrente das ameaças à democracia. Ele acrescenta que o governo federal precisa retomar a habilidade de planejamento estratégico de Estado, uma vez que todas as decisões voltadas à Economia e à construção de políticas sociais da atual gestão foram “improvisadas”, à exceção da reforma da Previdência.

Reconciliação

Para Oliveira, Lula deve ter mais facilidade na elaboração dos projetos pela experiência na condução de programas sociais e no traquejo com o Congresso. “Temos dois presidentes que dialogaram e conseguiram sucesso no combate à desigualdade social: Fernando Henrique Cardoso e Lula. O primeiro centrou-se no enfrentamento da inflação, instrumento que corrói a renda dos pobres, e deu início ao controle fiscal que permitiu que, adiante, o lulismo viesse a existir com sua visão voltada para as pessoas mais necessitadas. Lula, então, tocou a agenda de inclusão social”, pontua. “Se, hoje, o Brasil vive uma crise de desemprego, crescimento da fome e desmantelamento de políticas públicas, fica claro que Lula, que tem o apoio de FHC, é o melhor caminho”, prossegue. A resposta será dada pela sociedade no dia 30.

Entrevista Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente da república

Em entrevista à ISTOÉ, Lula afirma ainda que a reeleição de Bolsonaro traz riscos à democracia, mas adverte que ele terá de aceitar o resultado as urnas. “Simples assim!”, lembra o ex-presidente, que vê também ameaças ao futuro do País: “Hoje, mais de 30 milhões de pessoas passam fome.
Imagina o que esse cidadão fará se esse comportamento absurdo for recompensado com um segundo mandato”

A reeleição de Bolsonaro traria risco para a democracia?
Sim. O atual presidente deu, ao longo da sua carreira política e no cargo, repetidas demonstrações de pouco apreço pelas regras democráticas, pela independência dos Poderes da República e autonomia das instituições. Ele, infelizmente, alimenta conflitos e a divisão no País, em vez de trabalhar pela paz e para que busquemos os objetivos comuns do desenvolvimento, da redução da pobreza, da melhora da Saúde e da Educação.

O episódio de Roberto Jefferson mostra que Bolsonaro pode não aceitar pacificamente o resultado das urnas, repetindo o que aconteceu no Capitólio em 2021?
Bolsonaro terá de aceitar o resultado das urnas. Simples assim! O que o episódio do Roberto Jefferson mostra é o grau de insanidade que o país alcançou com Bolsonaro. Um sujeito, aliado de Bolsonaro, incentivado por declarações dele, que também disse que resistiria à prisão com tiros, que arremessa granadas e atira com fuzil contra policiais federais, é de uma gravidade sem tamanho.

O pior é que ele tenta agora se desvincular de Jefferson, né?
A primeira reação de Bolsonaro inclui justificar as ações desse cidadão com mentiras. E ele tem a cara de pau de dizer que não tem fotos dele com Roberto Jefferson, seu aliado até ontem, inclusive na dobradinha do padre Kelmon no debate. Como ele pode mentir de forma tão descarada? Há dezenas de fotos e vídeos dos dois juntos, de juras de amor de Jefferson para Bolsonaro.

Quais foram os maiores erros do atual presidente?
O comportamento que ele teve na pandemia foi criminoso, irresponsável. Negou a ciência, atrasou a vacina, desprezou as medidas de proteção, incitando as pessoas, em especial aquelas que acreditavam nele, a correr mais riscos de vida. Estudos mostram que mais de 400 mil pessoas morreram por causa da negligência do governo federal na condução da pandemia. São mais de 30 milhões de pessoas passando fome. Imagina o que esse cidadão fará se esse comportamento absurdo for recompensado com um segundo mandato.

O sr. pretende mudar a composição do STF, para aumentar o número de ministros, como propõe Bolsonaro?
Não pretendo. Eu não quero perder tempo em brigas institucionais. Não fiz isso nos meus oito anos de mandato e não farei agora. Eu pretendo me concentrar na recuperação do Brasil. No combate à fome, na geração de empregos, na educação e recuperação das universidades, institutos de pesquisa e demais órgãos que foram atacados pelo bolsonarismo.

O sr. propõe aumento real do salário mínimo, mas não há recursos no Orçamento para isso. O mesmo ocorre com o Auxilio Brasil. Como será essa negociação com o Congresso?
Será com diálogo e respeito, porque o Congresso também foi eleito. O orçamento que o Bolsonaro enviou prevê cortes na Saúde, na Educação, na Farmácia Popular, muita coisa que terá que ser revista. O Auxílio Brasil que Bolsonaro enviou no orçamento dele para o ano que vem prevê só R$ 405, então teremos que corrigir essa questão. Isso é muito melhor que os planos que o Guedes tem para enviar ao Congresso em um segundo governo Bolsonaro, onde eles estudam não corrigir mais o salário mínimo e aposentadorias pela inflação do ano, e desvincular, reduzindo, os recursos com Saúde e Educação.

O teto de gastos vai acabar?
Ele já acabou. O governo Bolsonaro nunca respeitou o teto de gastos. Eu acho a responsabilidade fiscal importante. Eu pratiquei a responsabilidade fiscal nos meus governos, reduzimos a relação dívida e PIB e promovemos o crescimento, E fiz tudo isso porque sou responsável, coisa que aprendi de pequeno, com minha mãe. Não é um teto que gera responsabilidade. A pandemia foi um exemplo de como o teto de gastos não funciona. O País tem necessidades sociais urgentes, precisa investir para construir ativos e se desenvolver. Teremos que cuidar de tudo isso ao mesmo tempo, sem loucura. Buscando investimentos produtivos no exterior, conversando com governadores e prefeitos.

O orçamento secreto será extinto?
Se fosse bom não precisaria ser secreto. Eu pretendo construir um orçamento participativo pela internet, com a população podendo participar e entender as definições dos gastos do governo.

Haverá alguma âncora fiscal para manter a responsabilidade sobre as contas públicas?
Eu pretendo governar com responsabilidade sobre as contas públicas, diante da situação que o governo Bolsonaro vai entregar, que será, tanto do ponto de vista social, quanto econômico, pior do que a que eu peguei em 2003. O que o Brasil ainda tem, diferente daquela época, são as reservas de mais de US$ 300 bilhões deixadas pelos governos do PT. Isso nos dá alguma estabilidade e segurança. E hoje eu sou mais experiente. Sei que terei que trabalhar muito, e conversar muito com a sociedade para o país voltar a crescer de verdade, acima da média mundial. Você pode ver pelos meus governos que melhoramos todos os indicadores de contas públicas.
Henrique Meirelles será seu ministro da Economia?
Eu não defino equipe antes de ganhar eleição. Uma coisa que eu sei que o Brasil não aguenta são mais quatro anos de Bolsonaro e Paulo Guedes.

Vai ter reforma tributária com criação do IVA?
A reforma tributária será debatida com a sociedade, para construirmos um sistema de tributos mais justo, mais simples. Eu quero incluir o pobre no orçamento e os muito pobres no imposto de renda. Uma discussão que respeite as partes para que a gente consiga construir um modelo mais eficiente para a produção e financiamento da Educação, da Saúde, do desenvolvimento do País.

O sr. vai tirar os sigilos de 100 anos que Bolsonaro decretou em vários casos?
No primeiro dia de governo.

Bolsonaro abusou da máquina pública, inclusive nas eleições. Como impedir que isso volte a acontecer no futuro?
Elegendo pessoas comprometidas com a democracia. Eu, quando fui candidato à reeleição, só fazia campanha depois do horário de expediente. Bolsonaro, que nunca trabalhou ou governou de verdade, abandonou de vez fingir que governa, e está em campanha em tempo integral há muito tempo. Eu estou me elegendo para um mandato só, para trabalhar muito em quatro anos. E espero que o Brasil volte a ter disputas políticas feitas entre democratas, que respeitam a democracia, como eu e o Alckmin.

O sr. se aproximará do Centrão pela governabilidade no seu governo?
O Centrão não existe como bloco político. É um agrupamento diverso de políticos muito diferentes, com questões regionais e pautas diferentes. Eu vou conversar com os deputados eleitos.

O sr. já defendeu o controle social da mídia. Há risco de censura sobre os meios de comunicação?
Ninguém está discutindo censura. Está se discutindo a atualização da lei dos meios eletrônicos, que é dos anos 1960 e que não dá conta do mundo da internet. Ninguém quer censurar conteúdo. Queremos mais diversidade de empresas e conteúdo atuando em comunicação e que o trabalho dos jornalistas seja respeitado.

Se ganhar, o sr. terá quase metade da população que optou pelo caminho da direita. Como o sr. pretende pacificar o País?
Depois da eleição o vencedor governa, quem perdeu se prepara para a próxima. É assim. Infelizmente Bolsonaro não é o caminho da direita. Tem gente honrada de direita, gente séria de quem eu posso discordar, mas que não merece estar no mesmo grupo de Bolsonaro. O presidente não é de direita, ele é um mentiroso compulsivo, um sujeito que despreza a vida humana, a ciência, a fraternidade. Muitas pessoas que votam nele talvez estejam iludidas pelas mentiras contadas pelas milícias digitais dele. Mas assumindo um governo que trabalhe pelo bem das pessoas, conversando, se comunicando, certamente o país voltará para o rumo da normalidade e do desenvolvimento com inclusão social.