Por Leonel Rocha, da Coluna

O Brasil testa quase secretamente há alguns anos um novo sistema de Governo. É um tipo aleatório de gestão pública, sem teorias que o explique e sem referências internacionais. A fórmula mistura características do Presidencialismo, do Parlamentarismo e do Semipresidencialismo. O modelo adota diferentes facetas a depender da força eleitoral ou carisma do presidente da República ou do polo de poder real que se transformou o Legislativo.

Nesta inédita governança, o presidente da República é eleito, mas divide o poder com o Congresso, onde cada um dos 513 deputados ou dos 81 senadores funciona como o mini primeiro ministro, com direito constitucional para definir e executar parte significativa do Orçamento da União. Não importa se os congressistas formaram aliança eleitoral com o presidente, apoiam ou não o Governo eleito, ou se seguem orientação partidária.

Atomizado e fluído, este novíssimo sistema pode ser chamado de Congressismo, na falta de melhor definição. Se instalou aos poucos. Desde 2001, quando tirou do Executivo o poder de reedição infinita de Medidas Provisórias, até a inclusão na Constituição, em 2015, das emendas impositivas ao Orçamento, o Congresso avançou sobre a execução do Orçamento, antes a cargo exclusivo do Executivo. Também adotou ritos de votação que transferiram a palavra final das leis para o Legislativo, com exigência de votação de Medidas Provisórias e vetos sob risco de trancar a pauta de votações de leis (veja linha do tempo abaixo).

As emendas impositivas são de execução obrigatória. Se o gestor não fizer a obra ou instalar o serviço, pode responder por crimes graves como improbidade administrativa. O poder do legislador de funcionar como gestor e aplicar o recurso do Orçamento chegou ao detalhe de a emenda parlamentar especificar a execução de pequenas obras, sem depender do presidente ou do ministro. Além de poder mandar o Executivo transferir dinheiro a governadores e prefeitos para aplicação livre ou pagar custeio. É a chamada emenda pix.

Quando pela primeira vez limitaram o poder do presidente da República de reeditar MPs, em 2001, as emendas dos congressistas representaram 2% das receitas líquidas da União. Recurso incluído na rubrica tecnicamente conhecida como despesas discricionárias do Orçamento, aquelas em que o Governo decide quanto, onde e quando aplicar. O Congressismo se instalou de vez. (Veja tabela).

Pela regra das emendas impositivas, 50% do valor deve ser destinado ao setor de saúde. Cada deputado tem o direito de executar R$ 16,5 bilhões por ano do Orçamento, R$ 66 bilhões no mandato de quatro anos. Cada senador o recurso é maior, de R$ 82 milhões. No mandato de oito anos o montante é de R$ 650 milhões.

Análise feita pela Accion Consultoria na legislação aprovada pelo Congresso mostra como o Legislativo pavimentou o caminho da tomada de poder, sem mudar formalmente o sistema de governo. (Veja a linha do tempo abaixo).

Levantamento da Associação Contas Abertas com base em dados do Sistema oficial de dados (Siafi) mostra que em 2016 as emendas de deputados e senadores pagas representaram R$ 3,6 bilhões. No ano passado este valor chegou a R$ 28 bilhões. Para este ano este naco do orçamento é de R$ 36,5 bilhões. Desse total, R$ 7,6 bilhões são emendas de comissões, coletivas, sem a identificação do pai da proposta.
“Não vejo problema o Legislativo indicar o investimento público. O problema é a qualidade do gasto que precisa ser analisado tecnicamente”, alerta Gil Castelo Branco, fundador do Contas Abertas.

O estudo “Emendas Parlamentares e Controle do Orçamento pelo Legislativo: uma comparação do Brasil com países da OCDE” – elaborado pelo economista Marcos Mendes, revela que entre 2012 e 2013 o Congresso brasileiro foi o que mais abocanhou a receita primária discricionária do Executivo: 24,2%. Nos Estados Unidos foram 2,4

GANHOS DE PODER DO CONGRESSO

Emendas parlamentares por autor

2001   Palavra final sobre Medidas Provisórias. Emenda constitucional 32 suspende todas as votações do Congresso enquanto uma MP do Executivo editada há 45 dias não tenha sido votada. Antes, uma MP poderia ser republicada sem limite.

2009 Ordem de Plenário 411. Deputados criaram uma agenda política paralela ao governo. O então presidente da Câmara, Michel Temer, aprovou em votação simbólica sua tese jurídica de que as MPs só trancam a pauta do Congresso em casos de assuntos exclusivamente da alçada do Poder Executivo, como emendas e projeto de lei complementar.

2012 Comissão mista para análise de MPs. Decisão do ministro Luiz Fux, do STF, diz que as MPs precisam obrigatoriamente ser votadas por uma comissão mista do Congresso antes de ir à Plenário. Com isso, transfere ainda mais poder ao Legislativo.

2013 Palavra final sobre vetos. Com a Resolução 01, o Legislativo passa a dar a palavra final sobre os vetos presidenciais. Antes desta resolução, 3 mil vetos não tinham sido analisados pelo Legislativo e as leis a que eles se referiam eram moldadas ao sabor do presidente da República.

2015 Emenda Impositiva ao Orçamento. Incluído na Constituição a obrigatoriedade de execução das emendas parlamentares, individuais ou coletivas, pelo Executivo. Metade de cada valor para educação e saúde. Inicialmente havia uma cota de 1,2 % das receitas liquidas da união. Hoje está em 25% das RCLs.

2016 Teto de Gastos. Com apoio do Executivo pós impeachment, o Congresso aprovou emenda constitucional que limita os gastos da União, que passaram a ser corrigidos apenas pela inflação do ano anterior. Com isto, o Executivo perdeu a autonomia de mudar, na execução, o Orçamento aprovado no Congresso.

2019 Emenda Pix.  Dinheiro transferido do congressista para o prefeito ou governador. O deputado ou senador define o valor da transferência junto com os executivos do seu estado e aprova no Congresso a transferência, sem necessidade de haver projeto para aplicar o dinheiro..

2020 Câmara concentra poder sobre MPs – O então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (União-RJ), aprova no colégio de líderes ato administrativo concentrando na presidência o poder de escolher relatores para analisar as MPs. Também não houve comissão mista especial para isto alegando-se a pandemia da Covid-19.

2020 Orçamento secreto. Com nome técnico de Emenda do Relator, o Congresso passou a identificar e controlar o excedente de arrecadação no Orçamento, atribuição antes do Executivo, e o relator geral do Orçamento omitia a autoria da emenda nesta rubrica genérica de sua responsabilidade, que destinava recursos públicos para obras ou serviços sem identificar qual parlamentar sugeriu.

2022. STF caba com o Orçamento secreto. Decisão da ministra Rosa Weber, do Supremo, proíbe que o excedente de arrecadação tributária identificada na elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias seja alocado como emenda de relator do Orçamento.

2023. Congresso aumenta valor das emendas impositivas. Para compensar a proibição do Supremo de alocar recursos do excedente de arrecadação à emenda de relator, sem identificação de destino.

Fonte: Arquivos do Congresso/Accion Consultoria/