Como reflexo de uma economia cada vez mais incontrolável, os hábitos de compra do brasileiro estão se modificando. Um dos segmentos mais fortes do País, a indústria automotiva, começa a sentir os primeiros impactos dessa mudança, que foi impulsionada pela inflação de dois dígitos e pelo encolhimento de 8,8%, na média, do salário no último ano. Tem ainda o recente aumento do combustível provocado pela guerra na Ucrânia, conflito que beira os dois meses de duração. Tudo isso faz com que o consumidor prefira a moto ao carro. Já se percebia o aumento delas, barulhentas e apressadas, costurando entre as faixas de trânsito, principalmente nos últimos dois anos. Em março, os números de vendas chancelaram essa mudança. Foram emplacadas mais motos (110 mil) do que carros (108,2 mil), pela primeira vez em 30 anos. O aumento de vendas superou em 76,75% o mesmo período de 2021.

Ao ver o orçamento apertado, o analista de TI Allan Fabretti Murari, de 34 anos, decidiu vender o Fox, modelo 2017, no ano passado. “Eu usava o carro para ir e vir do trabalho, mas o custo de vida subiu muito e resolvi enxugar as contas”, diz ele, que se refere principalmente ao preço do combustível, que aumentou 18,8%, em março, e do IPVA, 22%. A ideia era usar parte do dinheiro da venda para adquirir uma moto, um modelo econômico de 160 cilindradas, o que julgou ideal para transportá-lo até o trabalho. “Mas fiquei esperando um pouco. Achei que o preço cairia”, explica. Aconteceu justamente o contrário. O modelo que ele estava de olho subiu de R$ 13,9 mil para R$ 18,9 mil no ano passado. No início de abril, finalmente, Murari foi à loja fechar negócio, antes que o preço subisse ainda mais, o que de fato aconteceu na semana seguinte. Ele adquiriu uma Haojue, segunda marca da Suzuki.

O aumento da gasolina somado à vontade e ter a primeira moto fizeram com que o diretor comercial Haroldo Devlin de Freitas Figueiredo Santos, de 33 anos, comprasse uma Chopper Road, de 150 cc. “Tenho carro, um Corolla, mas acho a moto melhor para se locomover em São Paulo. A cidade tem um trânsito terrível e a manutenção sairá mais em conta.” Recentemente, ele tirou a habilitação específica e está ansioso para retirá-la da loja. Santos e Murari fazem parte de um grupo de consumidores que correspondem a 25% dos compradores que resolveram adquirir uma moto para diminuir custos e facilitar a mobilidade, segundo pesquisa do setor.

A maior parte das vendas (90%) é de motos de cilindrada baixa. E nesse segmento a Honda lidera as vendas, seguida pela Yamaha.

O grande salto das vendas se justifica pelo aumento da procura do público que usa o veículo como ferramenta de trabalho. “No ano passado, a pandemia multiplicou as operações de delivery, expandido as vagas para entregadores, o que puxou para cima as vendas de motos”, diz André Marques Riviello, presidente da Associação Brasileira dos Concessionários de Motocicletas Suzuki. “Neste período, a maioria comprou o veículo para ter uma fonte e renda.” Apesar de a taxa de desemprego ter caído para 11,2%, 12 milhões de brasileiros, o que equivale quase a população da cidade de São Paulo, ainda estão sem carteira assinada. E quem não tem emprego procura trabalho. “Surgiu também um outro tipo de negócios, o de aluguel de motos, para atender justamente a parcela da população que precisa da moto para trabalhar, mas o financiamento não cabe no bolso”, diz Riviello.

De acordo com a Associação Brasileira das Locadoras de Automóveis (Abla), a procura pelo aluguel levou à expansão da frota em 20 mil novas unidades no ano passado. Essa foi a maior compra da história do setor já registrada. Para se ter uma ideia desse salto, em 2019 as locadoras somavam uma frota de cerca de 8 mil motos, e no fim de 2021, essa cifra pulou para 46,4 mil unidades. Algumas companhias possuem contratos com as empresas de delivery para facilitar a contratação. Um exemplo do crescimento desse tipo de negócio foi o surgimento dos aplicativos de aluguel específicos para motoboys. Uma delas, a Mottu, aberta em 2020, começou com 300 veículos e hoje tem mais de 1 mil. O valor das locações custa em média R$ 250 a semana. Um motoboy ganha em média R$ 30 por entrega.