Aquilo que parecia um delírio vanguardista em 1967 virou a realidade brasileira atual. “Terra em Transe”, o terceiro longa-metragem de Glauber Rocha, revelou-se premonitório: o Brasil de hoje é uma terra em transe real. Como no drama do diretor baiano, as instituições se convulsionam: políticos de todos os partidos, juízes, promotores e empresários se acusam entre si. Gritam meias-verdades – rebatizadas de “pós-verdades” – em nome de um “povo” que ignoram. Como se não bastasse, as esquerdas não chegam a um acordo sobre como derrubar um governo que consideram “golpista”. Tanto no velho filme como no Brasil de agora, os cidadãos acordam para um pesadelo cotidiano onde não veem saída nos políticos, envolvidos em retórica lunática. Nos festejos dos 50 anos de “Terra em Transe”, a ficção prefigura a realidade. Situação que faz jus ao excêntrico Glauber, que sonhava em fazer do Brasil uma potência econômica e cultural, nem que para isso fosse preciso atrair políticos para viabilizar projetos. É dele a frase: “A História é feita pelo povo e escrita pelo poder” — com a ajuda dos intelectuais, pode-se acrescentar.

O herói de “Terra em Transe” é o poeta e jornalista Paulo Martins, vivido por Jardel Filho, especializado em trabalhar para políticos. Na fictícia república de Eldorado, campanhas políticas são polarizadas e confusas como as que deram justificativa ao golpe de 1964 e ao impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016. Dois líderes populistas disputam a Presidência: o religioso Porfírio Diaz (Paulo Autran) e o ex-sindicalista Felipe Vieira (José Lewgoy). Paulo é assessor de Diaz, mas se enoja com falsas promessas e passa a apoiar o opositor. Erra de novo. Como o rival, Vieira jura combater a fome e governar “para todos”. Mas faz um pacto com políticos e empresários desonestos. Entre eles, Júlio Fontes (Paulo Gracindo), o magnata da TV.

Reino da propina

À força de propina e exposição na mídia, Diaz se elege. Paulo parte para a luta armada. Seu primeiro e último ato é metralhar o presidente Diaz, quando este, com a cruz no peito, é coroado rei no alto da escada de um palácio barroco. Paulo é morto, não sem deixar de fazer um mea-culpa final.Ao estrear em 19 de maio de 1967 no Rio de Janeiro e ganhar o mundo, o filme de 105 minutos alcançou repercussão controversa junto à “intelligenstia”, mas não comoveu o público. Trazia a visão de um Brasil caótico, urbano e niilista, inédito só mesmo aos olhos estrangeiros. Glauber ganhou os prêmio de direção no Festival de Cannes e de melhor filme no de Havana. A recepção foi outra no Brasil. De início, a censura vetou a exibição, mas concluiu tratar-se de uma sátira às esquerdas, e a liberou. Os jovens militantes abominaram a história porque ela desnudava as insolúveis divisões da esquerda. Só perceberiam muito tarde que o filme antevia a luta armada que os dizimaria nos anos 70.

A única voz dissonante veio do jornalista Nelson Rodrigues – que, segundo os colegas de redação da “Última Hora”, sentava-se à extrema-direita de Átila o Huno. “Fiquei maravilhado com uma das cenas finais de Terra em Transe”, escreveu. “Refiro-me ao momento que dão a palavra ao povo. Mandam o povo falar, e este faz uma pausa ensurdecedora. E, de repente, o filme esfrega na cara da plateia esta verdade mansa, translúcida, eterna: o povo é débil mental. Eu e o filme dizemos isso sem nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será assim eternamente.

O povo pare os gênios, e só. Depois de os parir volta a babar na gravata.”Se vivesse hoje, o genial Glauber estaria morto – artisticamente linchado, como o são alguns de seus colegas de geração. Berraria contra as vaias das ruas e renegaria a canonização de “Terra em Transe”. Não sem deixar de lembrar que, em 1981, confessou que odiou rodar cada cena do filme e o achava muito chato, justamente por ser profético.

Trechos do filme

“O que você quer? Dinheiro? Poder? Pois venha comigo que terá todo o Poder!” o candidato Porfírio Díaz ao assessor Paulo

“As nossas riquezas, as nossas carnes, as vidas, tudo. Vocês venderam tudo!”
Paulo a Diaz

O intérprete
Glauber Rocha retratou o caos do Brasil em nove longas

ESTÉTICA O diretor achava que a câmera estava no cérebro (Crédito:Divulgação)

O diretor baiano Glauber Rocha (1939-1981) enfurecia tanto a esquerda como a direita. Além de satirizar ambas, valia-se dos então detestados políticos liberais para patrocinar seus filmes. Assim rodou o documentário “Maranhão 66”, para a campanha a governador de José Sarney – que a descartou, por ser realista demais. Era amigo do caudilho Antônio Carlos Magalhães, que sempre o apoiou. Fazia profecias, em geral sobre o passado. “Ainda faremos filmes feios”, disse em 1970 para valorizar a precariedade de “Terra em Transe”. Resumia assim a sua arte: “Uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”.

Seu legado está em tentar compreender o caos do Brasil para salvá-lo do atraso. Da crítica social de “Barravento” (1962) à confusão de “Idade da Terra” (1980), passando pela alegoria “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), deixou nove longas-metragens de ficção e oito documentários.