29/09/2022 - 10:23
Uma Cultura, na polissemia que define o próprio conceito, é múltipla e joga com um largo grupo de naturezas que, todas juntas, a definem: olhando apenas para as definições mais básicas de cultura, ao erudito, juntamos o popular, sem esquecer o material. Quando a realidade analisada é um país, o erudito circula nos antagonismos entre as tendências internacionais e os nacionalismos, ao passo que o popular, mais imune ao internacional e ao letrado, constitui parte significativa do ruminar de materiais que no tempo lento alimenta a as identidades. O jogo entre o erudito e o popular é o campo onde as representações são a chave para se compreender a forma como um material imagético, uma representação mental, cria uma mundivivência e, no limite, uma identidade.
- O precoce Rei Mago
As identidades fazem-se pelo confronto com o que é diferente, normalmente, o que é externo. E para Portugal, o confronto do olhar com o Brasil, foi desde cedo altamente desafiante, criando um ideário utópico. E a imagem como que genéricas, porque a primeira, não poderia ser melhor nessa forma de representar que nunca mais se afastou de uma visão altamente positiva e idílica: Grão Vasco, num óleo sobre madeira, pintado menos de meia-dúzia de anos após a chegada dos portugueses ao Brasil, usa uma cena bíblica como campo de experimentação na representação do “outro”.
Neste quadro temos, na figura de um dos Reis Magos, a primeira imagem europeia de um índio sul-americano, fazendo-nos crer no que pareceria impossível: o pintor parece ter visto, de facto, um índio, pela forma pormenorizada como o pinta: um cocar de penas, inúmeros colares de contas coloridas, manilhas de ouro nos pulsos e nos tornozelos, brincos de coral branco e, até, uma flecha com o seu longo cabo.
Não seria por acaso que, pouco tempo depois, Tomás Morus colocaria um navegador português, Rafael Hitlodeu, a narrar a Ilha da Utopia. Mas, aqui, estamos no campo de uma cultura erudita. Interessa olhar para os mais vastos grupos populacionais.
- Brasil: destino de migração
Mas interessa focar a análise num tempo mais próximo, especialmente nos últimos duzentos anos, desde a independência do Brasil. A principal linha de continuidade encontra-se nos movimentos migratórios. E, para Portugal, o Brasil sempre foi um dos destinos especiais para a busca de melhores condições de vida. Não só o Brasil era, e é, visto como uma terra de oportunidades e de livre iniciativa, a par do Canadá e dos EUA, como a ideia de um território fértil contrastava com um Portugal onde os terrenos agrícolas são áridos e improdutivos.
A imigração portuguesa para o Brasil após a independência apresentou uma dualidade. Ao mesmo tempo que a lei brasileira concedia privilégios jurídicos e políticos aos portugueses, eles também enfrentavam violentas perseguições e agressividade por parte dos brasileiros. Na Assembleia Constituinte de 1823, os portugueses residentes no Brasil não foram considerados estrangeiros, desde que concordassem com a independência. Mais tarde, na Era Vargas, o privilégio concedido aos portugueses foi significativo: a Constituição de 1934 limitou a entrada no Brasil de estrangeiros mas, em 1938, essa postura foi suspensa especificamente para os portugueses; ainda durante a II Guerra Mundial, Vargas incentivava a migração para o Brasil de portugueses, a fim de “garantir o fortalecimento étnico da nação”. Nesta linha, e com repercussões culturais muito importantes nas elites de ambos os lados do Atlântico, após a Guerra, o antropólogo Gilberto Freyre e um grupo de deputados defenderam que os portugueses não deveriam ser considerados estrangeiros no Brasil.
Décadas | Número de imigrantes |
1500-1700 | 100.000 |
1701-1760 | 600.000 |
1808-1817 | 24.000 |
1827-1829 | 2.004 |
1837-1841 | 629 |
1856-1857 | 16.108 |
1881-1900 | 316.204 |
1901-1930 | 754.147 |
1931-1950 | 148.699 |
1951-1960 | 235.635 |
1961-1967 | 54.767 |
1981-1991 | 4.605 |
Números da imigração portuguesa para o Brasil (1500-1991)
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
Ao longo dos dois últimos séculos, muitos portugueses rumaram ao Brasil buscando melhores oportunidades. Recentemente, com as dificuldades decorrentes da crise financeira iniciada em 2008, o Brasil tornou-se novamente atrativo para portugueses em busca de oportunidades: no primeiro semestre de 2011, 50 mil portugueses iniciaram o processo para adquirir um visto de residência no Brasil – contudo, apenas uma pequena parte o conseguiu.
- As casas e o mito do “brasileiro de torna-viagem”
Mas, mais que números, interessa olhar para uma situação muito especial que moldou a forma dos portugueses verem o Brasil. Refiro-me aos “brasileiros de torna-viagem”. A Emigração portuguesa nos séculos XIX e XX constituiu um fenómeno histórico e sociológico cuja importância se acentuou, quer no Brasil, pelo percurso profissional dos portugueses que aí desenvolveram os seus negócios, quer em Portugal, pelo impacto socioeconómico do seu regresso. Estes emigrantes regressados, criaram um imaginário muito forte que perdura até hoje, especialmente na paisagem, com as “casas dos brasileiros”.
A casa, imponente, rica, exuberante e marcante, constitui uma expressão paradigmática da melhoria das condições de vida daquele que partiu e que, posteriormente, regressou pleno de sucesso, transformando a paisagem rural do norte de Portugal.
Mas foram mais que “casas”: definiram um estilo social, ocupando cargos de natureza política e filantrópica, promovendo a construção de teatros, escolas e bibliotecas. Muitos dos emigrantes doavam edifícios ou auxiliavam na criação de cursos de alfabetização – o objetivo era, muitas vezes, ver a sua filantropia transformada numa comenda ou mesmo de um título nobiliárquico.
Partindo da figura marcante deste migrante que foi para o Brasil e depois regressou, foi criado um estereótipo originando retratos elaborados pelos romancistas da época, como Camilo Castelo Branco ou Ferreira de Castro. Toda a Cultura portuguesa representará o Brasil como o espaço que possibilita esse regresso em glória, quebrando o círculo da pobreza a que se estava votado no Portugal rural de oitocentos.
Figura presente em muitos municípios, o peso social destas figuras regressadas é ainda consolidado com casos que ascendem socialmente a pontos muito altos, como o de Bernardino Machado. Este futuro Presidente da República (1915 a 17, e 1925 a 26) nasceu no Rio de Janeiro, em 28 de março de 1851. O seu pai, natural de Vila Nova de Famalicão, tornou-se num abastado comerciante no Brasil. Regressada a família em 1860, rapidamente António Guimarães, pai de Bernardino, assume posições sociais de destaque na sua região de origem, quer na administração municipal, quer na benemerência, tendo sido agraciado, em 1870, como o 1.º Barão de S. Joane.
Bernardino Machado manteria a sua ligação ao Brasil, tendo sido nomeado ministro de Portugal no Rio de Janeiro, a 20 de Janeiro de 1912 (legação elevada a Embaixada em novembro de 1913). Bernardino Machado regressou a Portugal em fevereiro de 1914, quando se vivia no país uma crise ministerial, tendo sido eleito para o mais alto cargo do país no ano seguinte.
- Os Dois Mundos
Dando agora alguma atenção para o universo culturalmente erudito, o Brasil foi a matéria para a concretização de vários projetos culturais alimentados, quer pela ideia de levar a Cultura e o ensino às populações mais desfavorecidas, quer pela visão de o fazer, ao mesmo tempo, e com os mesmos suportes e produtos, nos dois países. Em termos de marca, encontraremos duas linhas de grande longevidade e ecos utópicos: a ideia de “dois mundos”, é a de “Portugal-Brasil” ou “Luso-brasileiro”.
A base é a simples constatação, talvez por vezes idealizada, de que, a uma mesma língua, podem corresponder iguais estratégias culturais. O marco de maior longevidade é, em Portugal, a gigantesca Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, que atravessa grande parte da segunda metade do século XX (editada entre 1963 e 1995), a grande obra de síntese cultural de várias gerações.
A par desta enciclopédia, o século XX teria ainda várias coleções de literatura e editoras que nos seus rótulos faziam eco dessa possibilidade de um livro poderia ter apenas uma edição para os dois países, princípio ainda tão propalado aquando do Acordo Ortográfico de 1991. O mais expressivo projeto editorial que agarrou este ideário e o levou à prática, foi a revista Os Dois Mundos.
A revista Dois Mundos era inspirada na congénere francesa, a Revue des Deux Mondes, uma das revistas mais antigas em circulação na Europa, com o seu primeiro volume de 1 de agosto de 1829. A versão luso-brasileira era lançada em 1877, e tinha como diretor Salomão Saragga, ilustre figura da Geração de 70, ou Geração de Coimbra. David Corazzi, futuro responsável pela marcante Biblioteca do Povo e das Escolas, era o gerente em Portugal, uma vez que a revista era editada em França onde residia Salomão. Francisco Gonçalves de Queiroz era o “agente no Brasil”, com escritório no Rio de Janeiro, no nº 78 da Rua da Quitanda.
Publicou grandes nomes da cultura portuguesa, como Antero de Quental, Ramalho Ortigão, Pinheiro Chagas e Oliveira Martins, entre muitos outros intelectuais portugueses. De facto, este projeto editorial, apesar de ter o Rio de Janeiro como sua segunda morada, era, fundamentalmente, uma revista portuguesa com o sonho de também ser brasileira.
- O café como modelo de urbanidade
A cidade burguesa portuguesa de finais do século XIX, marcada por uma importante vida cultural e uma boémia crescente, vai encontrar nos típicos cafés um dos seus lugares mais importantes. Muitos perduraram até hoje, mas um grupo deles ganhou um lugar especial nos estabelecimentos que mais marcaram a história das duas maiores cidades, Lisboa e Porto.
A marca “Brasileira” deu rosto possivelmente a dois dos cafés mais icónicos de Portugal. Era a origem do café, de qualidade, mas era sobretudo a imagem de modernidade e exotismo que o Brasil associava à marca. Ser “brasileiro” era, na linhagem das casas do brasileiro de torna-viagem, cultura, cosmopolitismo, liberalismo, tolerância.
Em Lisboa, a Brasileira do Chiado, fundada a 19 de novembro de 1905 na Rua Garrett, no Largo do Chiado, é um dos cafés mais antigos de Lisboa, marca importante na imagem da cidade, um dos locais mais visitados pelos turistas.
De forma semelhante, o café A Brasileira, no Porto, é um dos mais emblemáticos locais de encontro e reunião da cidade, localizado na Baixa Portuense, na Rua de Sá da Bandeira. Fundado por Adriano Soares Teles do Vale, nascido no concelho de Arouca, A Brasileira do Porto era a aposta comercial de um imigrante de torna-viagem que, depois de ter tido sucesso em Minas Gerais, regressou a Portugal e montou uma torrefação.
- A travessia aérea do Atlântico Sul
No contexto das comemorações do Primeiro Centenário da Independência do Brasil, teve lugar em 1922 a tão propalada travessia aérea do Atlântico Sul. Feito de importância científica, o seu maior destaque teve lugar na dimensão mediática que o envolveu, com uma cobertura jornalística ímpar.
Todo o país, vivendo num regime político que caminhava para o seu fim, se galvanizou em torno da heroicidade do feito que, qual aventura das Descobertas de há meio milênio, catapultava agora uma nova geração para feitos gloriosos. Longe de ser este o lugar para equacionar a heroicidade e a notoriedade do feito, o que aqui nos interessa é que até o Presidente da República se empenha nesta nova viagem a Terras de Vera Cruz.
Chegar, agora de avião, ao Brasil, era como tornar presente uma glória perdida. Na data do aniversário da sua independência, esta travessia aérea fazia a complexa equação de, afirmando esse caminho político separado, nele encontrar material para uma exaltação anacrónica que veio quase até aos nossos dias.
São centenas as ruas e avenidas em Portugal com o nome dos dois aviadores, tal como são imensas as suas estátuas e bustos – obviamente, todas em Portugal. Se houve tópico que uniu as narrativas simbólicas da I República e do Estado Novo, que a depôs, foi a contínua e continuada glorificação desse feito.
- As “ruas” do Brasil
Com o imaginário altamente positivo do Brasil através da imigração, com vários outros tópicos a reforçar esta imagem, quer na cultura mais erudita, quer na popular, quando os dois “Estados Novos” se instalam nos dois países, vemos nascer uma ainda mais profunda relação, agora marcada na onomástica.
Apenas três anos após o fim do regime Vargas no Brasil, em Lisboa, no ano de 1948, era inaugurada a Av. do Brasil, onde, sensivelmente a meio, termina a Av. Rio de Janeiro (que tem início na Av. dos EUA).
Um pouco por todo o país, nas décadas de quarenta a sessenta, vão-se multiplicando as homenagens ao Brasil através da atribuição do nome de ruas. Muitas vezes este reconhecimento pela onomástica acontece em zonas novas, marcadas por uma arquitetura moderna, qual imagem de um Brasil que se apresenta através de Brasília.
Avenida (do) Brasil | 51 |
Rua do Brasil | 49 |
Travessa do Brasil | 3 |
Praça do Brasil | 2 |
Largo República do Brasil | 1 |
Rua Nova do Brasil | 1 |
Travessa da Rua Nova do Brasil | 1 |
Rua Ribeiro do Brasil | 1 |
Beco do Brasil | 1 |
Existências onomásticas em Portugal com referência direta ao Brasil
São cento e dez as artérias urbanas dedicadas ao Brasil, mais de um terço dos municípios do país. Ver que o maior grupo é o das “avenidas”, mostrando a importância do local escolhido na hierarquia das vilas e cidades. O Brasil surge como uma das referências de memória coletiva mais valorizadas em Portugal.
- O universo ficcional: a “Gabrielomania” instalada em Portugal
Cada vez mais perto dos nossos dias, após a revolução democrática, em 1974, a imagem do Brasil virá dar a Portugal um contributo único na revolução dos costumes, na liberalização e libertação sexual. Mais uma vez, é a ideia de cosmopolitismo e de exotismo a marcar a forma como certos aspetos são recensionados em Portugal.
Se o luso-tropicalismo, com um certo cariz sexual, tinha ajudado a criar uma imagem simpática da colonização, baseando as relações com os povos indígenas nos afetos e na procriação, chegado Portugal a um tardio “maio de 68”, as telenovelas brasileiras foram uma das fontes mais importantes e culturalmente acessíveis para uma alteração a nível da sensualidade e da sexualidade.
A telenovela Gabriela estreava em Portugal em 1977, em plena crise económica e financeira, apenas três anos após a revolução. Com uma taxa de televisores por habitante muito baixa (cerca de 150 aparelhos de televisão por mil habitantes), as pessoas juntavam-se nas casas umas das outras para não perder a novela que apaixonava todos os setores da sociedade.
“Havia então da nossa parte [Portugal] muita receptividade para tudo o que fosse novo, designadamente nos costumes e hábitos” … “Vivíamos, em 1977, uma conjuntura muito especial, que potenciou os efeitos inovadores da telenovela, o que contribuiu para a assimilação do que era diferente e especial”, sublinha Edite Estrela, hoje deputada ao Parlamento Europeu.
Dizia o pintor Mário Dionísio, numa crónica publicada no semanário O Jornal, em agosto de 1977:
“[Só a Gabriela] realiza o milagre de juntar toda a gente, à mesma hora (incluindo os que consideram o PS o partido mais esquerdista deste mundo e do outro), em frente do televisor e, pelos vistos, por mais que isso nos espante, com sentimentos semelhantes…”
Como ficou marcado na mitologia nacional, quer Mário Soares, quer Álvaro Cunhal, rivais na política, eram dois dos políticos que não perdiam um episódio. Correu a lenda, já desmentida, de que, no Parlamento, se aligeiravam as ordens de trabalhos para os deputados regressarem a casa a tempo da transmissão.
Gabriela representava a sensualidade, a chegada da possibilidade de fugir à moral que tinha sido imposta durante a ditadura do Estado Novo. O exotismo da personagem representada por Sónia Braga era consolidada com a segunda telenovela, o Dancing Days, agora já numa atmosfera urbana, cosmopolita e sofisticada. As discotecas entravam na moda e moldavam as noites de diversão; as próprias roupas, começando pelas meias, eram usadas por todos os jovens que no “estilo” Dancing Days representavam a máxima modernidade.
O Brasil, num Portugal que saía de uma longa noite cultural, era o exótico, o cosmopolita, o sensual, a liberdade.
- O Carnaval
Celebrado há longos séculos na Europa, com especial peso no sul da Europa, em que no caso de Portugal tem especial lugar os rituais ligados à fertilidade dos campos, os chamados Ritos de Inverno, o Carnaval foi totalmente reformulado neste ímpeto de importação de cultura brasileira que atravessou as décadas de setenta e de oitenta do século passado.
A par das telenovelas consolidou-se a influência da música brasileira e, a par dela, o Carnaval brasileiro onde artistas de novela e cantores são as estrelas principais. A partir do início da década de oitenta, várias cidades recriaram as suas festas de Carnaval para as adaptar ao que as populações viam na televisão, ao que se passava no Rio de Janeiro, em Salvador ou em S. Paulo.
Surgiram os desfiles de escolas de samba, os carros alegóricos onde se apresentavam artistas brasileiros, apareceram, mesmo, concursos entre as referidas escolas de samba.
A região litoral do centro-norte é a que hoje concentra mais carnavais à brasileira, especialmente em Ovar, Estarreja, Mealhada e Figueira da Foz. O mais antigo, o de Ovar, data de 1988.
A festa tem lugar e hoje seria impensável fazê-la de outra forma. Contudo, o clima é bem diferente do brasileiro. No desfile, em fevereiro, em qualquer das cidades referidas, podem estar pouco mais de dez graus centígrados de temperatura…