O Brasil deixou para trás um passado de fragilidade institucional, digno de um “campeão de golpes”, e consolidou instituições capazes de resistir a crises internas e pressões externas, afirma Carlos Pereira, cientista político e professor da FGV, coautor do livro “Por que a democracia brasileira não morreu” (Companhia das Letras).
Em entrevista ao Matinal, programa do canal Amado Mundo, Pereira analisou como o presidencialismo com multipartidarismo e fortes mecanismos de controle garantiram estabilidade institucional ao país.
O cientista político também comentou as sanções impostas pelos Estados Unidos a ministros do Supremo Tribunal Federal, avaliou o impacto da polarização nas eleições de 2026 e o espaço à centro-direita em meio a Lula e bolsonarismo.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista ou veja a íntegra no Amado Mundo, ao fim do texto.
Como o Brasil deixou de ser visto como “campeão de golpes” para se tornar “campeão de democracia”, tema do seu livro “Por que a democracia brasileira não morreu”?
Não existe um sistema político ideal. O importante é que o regime gere equilíbrio: eleições competitivas, imprevistas, resultados respeitados e repetição em calendário previsível. No século XX, a América Latina era o cemitério de democracias. E a gente argumenta, no livro e em outros trabalhos, que essa instabilidade da democracia se dava por uma combinação muito específica de instituições políticas, que era o presidencialismo como multipartidarismo. Entretanto, o Executivo, o chefe do Executivo, era constantemente muito frágil. Então, ele não conseguia montar maiorias pós-eleitorais porque ninguém queria ser seu parceiro. Tinham crises sucessivas de governabilidade, com riscos, inclusive, para a democracia. No fim do século, veio o aprendizado: transferiram-se poderes ao Executivo, que ganhou capacidade de governo. De forma paradoxal, presidentes fortes, antes vistos como ameaça, passaram a atrair suporte. Mas sempre com contrapesos institucionais robustos — Ministérios Públicos, Judiciários, tribunais de contas. Esse modelo de presidencialismo com multipartidarismo e controles fortes consolidou a democracia. Hoje, só alguns países não são plenamente democráticos. Mesmo quando presidentes caíram, inclusive no Brasil, foi por processos constitucionais, não por tanques. A democracia se estabilizou. Essa combinação institucional foi o milagre que trouxe estabilidade.
Como as atuais sanções dos EUA aos ministros podem afetar a independência do Supremo?
O que a gente percebe agora é que os riscos para a democracia não vêm apenas de dentro. No século XXI, o grande risco deixou de ser golpes militares e passou a ser a eleição de presidentes com tendências autocráticas, que, uma vez no poder, concentram forças e enfraquecem os controles. Com o novo governo Trump, esses riscos deixaram de afetar só os Estados Unidos e começaram a ser exportados. No caso do Brasil, além de tarifas impostas com motivação política, houve sanções pessoais a ministros da Suprema Corte, tratando-os como terroristas e restringindo até operações financeiras. Isso é uma interferência internacional em uma instituição democrática. Ainda assim, não tenho dúvidas da capacidade das instituições brasileiras de resistir. Do ponto de vista econômico, os Estados Unidos são importantes, mas representam apenas cerca de 13% das exportações brasileiras. Há espaço para diversificação e políticas de compensação. Do ponto de vista político, nossas instituições são fortes e independentes. Não creio que pressões internacionais alterem processos de julgamento que têm seguido seu curso normal, com direito de defesa e respeito ao devido processo legal. Possivelmente a democracia brasileira sairá fortalecida desse episódio, em vez de enfraquecida.
A pressão que os Estados Unidos e a extrema-direita vêm exercendo sobre o STF pode interferir, de fato, no julgamento de Bolsonaro?
Acho que o governo americano comprou gato por lebre. Bolsonaro e seu clã venderam a ideia de que o Supremo vivia uma crise de legitimidade e que uma ação desse tipo iria fragilizá-lo, beneficiando o ex-presidente e seu grupo político. Mas não é isso que está acontecendo: as instituições seguem seu curso normal. Houve uma incompreensão dos bolsonaristas de que essa estratégia enfraqueceria o Supremo. Pesquisas de opinião e acadêmicas mostram que a percepção sobre a Justiça depende do lado em que se está: quem vence tende a considerar as decisões legítimas; quem perde, a vê-las como parciais. Foi assim no caso Lula e agora se inverteu. A Suprema Corte sabe disso. Seus ministros têm consciência de que as decisões são interpretadas por vieses ideológicos e partidários. Mas são juízes experientes, indicados por diferentes governos, e a chance de interferência direta afetar seus julgamentos é muito baixa, eu diria que é quase nula.
Qual é a sua análise para o segundo turno de 2026? Você enxerga Lula contra alguém de sobrenome Bolsonaro, como um filho de Jair ou Michelle, ou acredita em alguém da centro-direita, como Ratinho Júnior, Romeu Zema ou Ronaldo Caiado?
A política brasileira tem sido marcada pela polarização em torno de figuras carismáticas. O carisma é raro e, quando alguém consegue estabelecer essa ligação direta com o eleitor, seja de esquerda ou direita, é difícil se livrar dessas figuras no curto prazo. Quando Lula esteve preso, a esquerda teve chance de criar novas lideranças, mas sua estratégia de segurar até o último minuto manteve sua influência e impediu alternativas. Até hoje ele segue como principal nome do campo progressista, o que mostra a dependência da esquerda. Na direita, Bolsonaro emergiu, desde 2018, e tenta manter influência, seja com a própria candidatura, com um filho ou com Michelle. O cenário mais provável é que Bolsonaro insista e lance um candidato da sua confiança, pois não confia que qualquer um desses candidatos irá manter a promessa de aliviar eventual punição que ele venha a sofrer. Assumindo que Ratinho Júnior ou Caiado ou Zema, qualquer um desses, Eduardo Leite, venha se transformar em um candidato crível e competitivo no 2026 e seja eleito, os incentivos para que esse presidente eleito reinsira Bolsonaro no jogo é um risco, inclusive, para ele próprio, porque ele vai querer participar do jogo nas eleições subsequentes. Assim, o cenário deve se organizar em três blocos: a esquerda com Lula, a direita com Bolsonaro e a centro-direita tentando se firmar. Esse último pode se tornar competitivo porque representa cerca de 30% do eleitorado, segundo pesquisas. Se conseguir chegar ao segundo turno, pode quebrar a polarização que domina a política brasileira. O jogo está aberto. Mas, caso Bolsonaro seja condenado e sua pena implementada ainda neste ano, sua influência tende a enfraquecer, abrindo mais espaço para a centro-direita.