O menor estado brasileiro em população e economia é o cenário da maior crise migratória da história do País. Cerca de 50 mil venezuelanos entraram no estado fugindo da carestia no país vizinho e pressionando os serviços públicos de Roraima. A governadora Suely Campos (PP) entrou em abril com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo o fechamento temporário da fronteira. Ela acusa o governo federal de omissão e de deixar o estado à míngua num momento de dificuldade. Na ação, exige que três medidas sejam cumpridas: o ressarcimento dos gastos que Roraima já contabilizou ao longo da crise migratória (R$ 184 milhões), um controle mais rigoroso da fronteira e a instalação de uma barreira sanitária para impedir o avanço de doenças como sarampo e malária. “A omissão do governo federal em prestar socorro ao nosso estado é flagrante”, disse Suely, na entrevista a seguir. No próximo dia 8 haverá uma nova audiência de conciliação no STF. A expectativa da governadora é que seja apresentada uma contraproposta do governo federal para debelar a crise.

Qual é a sua expectativa em relação à ação que corre no STF?

É a melhor possível. Estou muito confiante na sensibilidade da ministra Rosa Weber, relatora do caso, que atendeu ao meu pedido de dialogar sobre essa questão no próprio STF e não na Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Pública Federal. Já tivemos uma audiência no dia 18 de março e teremos outra no dia 8 de junho. Se houver boa vontade do governo federal em atuar de fato no controle dessa que é a maior crise migratória já enfrentada pelo Brasil, acredito que teremos uma solução em junho. Se isso não ocorrer, acredito no conhecimento jurídico da ministra e dos ministros do Supremo para entenderem a gravidade do problema e o atendimento das soluções que nosso governo propôs.

O governo recebeu o apoio de comunidades indígenas nessa ação? Por quê?

Roraima enfrenta essa crise migratória já faz três anos e está claro que o governo brasileiro não enxerga que essa crise tem dois lados, duas vertentes. Temos a questão humanitária dos venezuelanos que estão sofrendo com a instabilidade econômica e política no seu país, mas também temos os brasileiros que vivem em Roraima e que estão sofrendo graves violações de direitos. Os impactos na saúde são gravíssimos. Os indígenas reclamam que estão vulneráveis a doenças, como o sarampo, convivem com uma criminalidade nunca vista antes em Roraima e estão perdendo seus empregos para os imigrantes, que barateiam a mão-de-obra. Há muito tempo os indígenas se sentem abandonados pelo governo federal em suas terras demarcadas. Eles não aceitam essa situação atual e por isso decidiram ingressar como amicus curiae na ação cível originária, o que reforça o drama vivido pelos roraimenses.

Como fica a questão humanitária em relação aos venezuelanos neste caso?

Por quase três anos, o único apoio humanitário que os venezuelanos receberam foi do meu governo e do povo roraimense, que é solidário e acolhedor. Tiramos pessoas das ruas e praças, oferecemos abrigo e alimentação. Sempre tivemos uma excelente relação com a Venezuela. Roraima é um estado distante dos grandes centros brasileiros e nossa ligação maior, tanto na área comercial quanto turística, sempre foi com a Venezuela. É triste ver o que fizeram com aquele país, outrora rico e próspero, e como isso vem causando sofrimento ao seu povo. Contudo, essa é uma crise que deve ser enfrentada de frente pelo Brasil e pelo mundo. É injusto que o povo de Roraima, menor estado do país em população e em economia, arque de maneira solitária com um problema federal. A Constituição é clara ao determinar à União a responsabilidade pelo controle das fronteiras.

Qual é a situação neste momento no estado e na capital Boa Vista?

Roraima registrou súbito aumento de pelo menos 10% na sua população e continuam entrando diariamente entre 600 e 800 venezuelanos, sem nenhum tipo de controle na fronteira, como verificação de antecedentes criminais ou exigência de carteira de vacinação. É um crescimento populacional que não temos condições de atender. Aliás, nenhum estado ou cidade do mundo está preparado para isso. É como se São Paulo recebesse, de uma hora para outra, 4,5 milhões de pessoas. Isso causaria colapso nos serviços públicos em qualquer lugar.

A senhora se sente abandonada pelo governo federal?

A omissão do governo federal em prestar socorro ao nosso estado é flagrante. De maneira estranha, como se atendesse a interesses políticos de aliados, os investimentos do governo brasileiro têm sido feitos somente para atender os imigrantes. O estado continua recebendo apenas as transferências constitucionais já previstas e o que é mais triste de ver é que a Casa Civil tem apresentado esses números referentes a recursos obrigatórios como se fosse ajuda a Roraima por causa da crise, o que não é verdade. Por isso, estamos cobrando no STF o ressarcimento de R$ 184 milhões, o que vai permitir aliviar o impacto nos serviços para o povo de Roraima.

O controle da fronteira está melhorando?

Depois que ingressamos com a ação, o governo federal iniciou um tímido trabalho de controle na fronteira, que ainda precisa melhorar para garantir segurança ao povo de Roraima. No mês passado estive em Pacaraima e, lamentavelmente, constatamos que não havia nenhum tipo de controle. A fronteira estava completamente livre, entrava e saia quem quisesse, portando qualquer coisa, sem nenhuma obrigatoriedade de passar pelo controle da Polícia Federal. Na única barreira do Exército, distante um quilômetro da linha de fronteira, a inspeção de veículos e pessoas era aleatória. Essa vulnerabilidade facilita a atuação das organizações criminosas que intensificaram a prática de crimes como tráfico de drogas e de armas. Eles estão aliciando venezuelanos para a criminalidade. A falta de controle sanitário é outra situação muito grave. A vacinação não é obrigatória e o resultado desse descaso com a saúde pública é a epidemia de sarampo que nosso povo enfrenta, com 350 casos notificados e três mortes associadas à doença, e uma explosão de casos de malária, a maioria vindos da Venezuela.

De que tipo de ajuda Roraima precisa exatamente?

Como falei anteriormente, é preciso reduzir esse fluxo. Roraima não suporta mais essa intensa onda migratória. O Brasil e o mundo precisam encontrar uma forma de dar apoio humanitário aos venezuelanos no próprio território da Venezuela. Como essa questão do fechamento temporário da fronteira é complexa e depende do diálogo que iniciamos no STF, urge o reforço das Forças Armadas no patrulhamento de toda a faixa de fronteira seca, para coibir crimes, e da Polícia Federal em Pacaraima, no controle da imigração, inspecionando documentação e bagagem de todas as pessoas que ingressam no país, com a exigência de antecedentes criminais ou de passaporte, como ocorre em qualquer país. Precisamos de uma barreira sanitária em Pacaraima e da obrigatoriedade de vacinação de todos que cruzarem a fronteira. Necessitamos de recursos para custear o déficit acumulado com a prestação de serviços públicos aos estrangeiros. Queremos ainda que o governo federal amplie o acolhimento humanitário aos venezuelanos, principalmente no que se refere à interiorização. Pouco mais de 500 pessoas foram levadas para outros estados até agora. É menos do que entram em Roraima em um dia.

De que maneira a imigração de venezuelanos pressiona os serviços do estado?

O atendimento a imigrantes nos hospitais aumentou 6.500%, o que representa custo adicional de R$ 70 milhões e o Estado não tem estrutura para suportar essa demanda. É impossível, com a limitação orçamentária e diante dessa crise financeira que afeta todos os estados ofertar, de uma hora para outra, leitos e medicamentos suficientes. Na educação, houve aumento de 400% no total de imigrantes matriculados nas escolas, sem nenhuma contrapartida do MEC. A fronteira livre e o grande fluxo também favorecem a entrada de drogas, armas e de bandidos que aproveitam para se infiltrar no grande número de refugiados. Houve um aumento de 173% nos crimes envolvendo estrangeiros nos últimos dois anos. O único repasse específico feito ao Estado de Roraima foi de R$ 480 mil em 2017, para a compra de alimentos e gás para os abrigos administrados pelo governo do estado à época — hoje a gestão dos abrigos é das Forças Armadas. Como comparação, a União Européia acaba de doar R$ 10,6 milhões ao Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, que está atuando na fronteira. Recentemente o governo federal transferiu R$ 1,8 milhão para a assistência social, mas ainda não liberou os recursos.

Qual é o balanço que a senhora faz desse processo migratório até agora? Qual é sua expectativa de curto prazo?

Estima-se que hoje são mais de 50 mil venezuelanos vivendo no estado, o que representa 10% da população de Roraima. Por dia, a Polícia Federal registra na fronteira, a entrada de 600 a 800 venezuelanos que buscam refúgio no Brasil e a primeira parada é em Roraima. Roraima é o estado menos populoso do País, com 522 mil habitantes, uma economia ainda em formação e que registra o menor PIB entre todos os estados brasileiros. Essa crise trouxe um ônus demasiado pesado para Roraima suportar da forma como está. Não há nenhuma expectativa de solução a curto e médio prazos, pois a crise na Venezuela não dá sinais de arrefecimento.

A senhora é candidata à reeleição. Em que medida isso influencia suas decisões?

Nossa ação no STF não é uma medida de governo, mas de Estado. Interessa não a mim, mas a todos os roraimenses. O Brasil ainda não entendeu o tamanho da crise porque ela reside em Roraima e muito pouco avança das nossas divisas. Todas as minhas decisões têm o objetivo de promover o desenvolvimento de Roraima e o bem-estar da nossa população. Temos ajudado os venezuelanos de todas as formas possíveis, com acolhimento humanitário e acesso aos serviços públicos, mas não posso virar as costas para os roraimenses. Se o governo federal não está disposto a nos ajudar efetivamente, é preciso fechar a fronteira temporariamente para estabilizarmos a crise que se instalou em Roraima.

O governo do estado e a prefeitura de Boa Vista estão trabalhando de maneira afinada?

A prefeitura da capital é comandada por um grupo opositor ao meu governo. Mantenho o diálogo aberto, mas nessa questão migratória, por exemplo, a prefeitura se recusou a fornecer o café da manhã para os abrigos, mesmo com ordem judicial para garantir esse auxílio.

Nota de esclarecimento da Prefeitura de Boa Vista (RR)

Ao contrário do que foi publicado em trecho da entrevista com a governadora Suely Campos na edição 2528 de 31 de maio (“O Brasil ainda não entendeu a crise na fronteira”), duas citações merecem ser retratadas por não corresponderem à verdade dos fatos.

1 – Desde 2016, a Prefeitura de Boa Vista trabalha de forma solidária e em parceria com o
Governo Federal na elaboração de Planos de Ação para enfrentamento da crise dos refugiados venezuelanos. Naquela época, já havia sinais evidentes de sua gravidade. Para se ter uma ideia, no Hospital Infantil da Prefeitura, em 2016 foram internadas 66 crianças venezuelanas. Em 2017, este número multiplicou 38 vezes, para 2.500 crianças atendidas, o que corresponde a um aumento de 3.787% no número de atendimentos. Já este ano, de janeiro a abril, foram 1.773 crianças atendidas. Nas Unidades Básicas de Saúde, em 2017, foram atendidos 85.479 venezuelanos. E só este ano, até abril, já somam 52.449 venezuelanos atendidos. Boa Vista teve, até agora, um total de 236 notificações de sarampo. Desses, 104 confirmadas, 19 descartadas, 113 em investigação. No total já foram administradas 72.854 doses da vacina tríplice viral em Boa Vista. Nas escolas de educação infantil e de ensino fundamental do município, 2.081 crianças venezuelanas estão matriculadas. A prefeitura também realizou obras estruturais em todos os abrigos de responsabilidade do Exército Brasileiro.

2 – A Prefeitura Municipal de Boa Vista forneceu café da manhã aos refugiados durante o primeiro semestre de 2017, por meio de verba emergencial da Secretaria de Gestão Social do Município, no período de 6 meses. O fornecimento foi encerrado porque a União liberou recursos financeiros ao Governo do Estado de Roraima para custear a aquisição de alimentos. Trata-se de uma crise humanitária que afeta o Brasil inteiro, onde todos somos responsáveis por esse enfrentamento.