É dever dos parlamentares, eleitos pelo povo, legislar à luz dos anseios e interesses dos brasileiros. Esse princípio elementar tem um significado ainda mais profundo quando um projeto de lei é enviado ao Congresso Nacional por iniciativa popular, como é o caso das dez medidas de combate à corrupção. Em tese, ele poderia dar ao Brasil um arcabouço legal para coibir a prática de crimes que sangram os cofres públicos. Na quinta-feira 14, porém, nossos deputados e senadores deram mais uma demonstração de que estão preocupados apenas com eles mesmos. Os congressistas ficaram incomodados com a decisão do ministro Luiz Fux, do Superior Tribunal Federal (STF), que declarou sem efeito a votação do pacote anticorrupção. As reações foram tão rápidas quanto severas. “Essa medida é indefensável, porque ela interfere no processo legislativo”, afirmou Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado. Para Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, trata-se de uma “intromissão do Judiciário”.

“O Judiciário pode interferir a pedido de um parlamentar toda vez que ele promova uma ação demonstrando que o processo legislativo não está correto” Luiz Fux, ministro do STF

Apesar de refutada no Congresso, a decisão do ministro Fux está em consonância com as demandas dos milhares que foram às ruas protestar contra a roubalheira. O pacote anticorrupção encabeçado pelo Ministério Público chegou a Brasília no final de março com o aval de 2 milhões de assinaturas e foi analisado por comissão especial da Câmara. Em novembro, o colegiado sancionou um substitutivo e a proposta foi encaminhada ao plenário da Casa. Na madrugada de 29 para 30 daquele mês, os deputados aprovaram o texto, com diversas alterações, e incluíram ameaças veladas ao Judiciário, como punições a juízes e promotores por abuso de poder.

“Essa medida é indefensável, porque ela interfere no processo legislativo” Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado

“Há afronta aos preceitos democráticos quando o Parlamento desvirtua o conteúdo de projeto cunhado […] em proposta de iniciativa popular”, escreveu Fux. “O projeto iniciativa popular [deve ser] debatido na sua essência, interditando-se emendas e substitutivos que desfigurem a proposta original para simular apoio público a um texto essencialmente distinto do subscrito por milhões de eleitores.”

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Na semana passada, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSC-SP) entrou com um mandado de segurança pedindo que a manobra fosse anulada. Sob o risco de o Senado colocar em votação as medidas retalhadas, o ministro Fux determinou a devolução da proposta à Câmara, para que os parlamentares a apreciem novamente. “Há apenas simulacro de participação popular quando as assinaturas de parcela significativa do eleitorado nacional são substituídas pela de alguns parlamentares”, destacou Fux. “Bem assim quando o texto gestado no consciente popular é emendado com matéria estranha ou fulminado antes mesmo de ser debatido, atropelado pelas propostas mais interessantes à classe política detentora das cadeiras no Parlamento nacional.”

O coordenador da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, comemorou. “A decisão de Fux devolve a esperança a milhões de brasileiros”. Gilmar Mendes, colega de Fux no STF, rebateu classificando a deliberação de “AI-5 do Judiciário”, em referência ao ato que em 1968 cristalizou a ditadura militar. “É melhor fechar o Congresso e entregar as chaves ao [Deltan] Dallagnol [coordenador da Lava Jato].”

Na prática, o embate é mais um round da luta entre o Supremo e o Congresso. Ocorre apenas uma semana depois de o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), se recusar a cumprir uma determinação judicial e sair impune. Apesar dessa vitória, na quinta-feira o parlamentar levou um baque quando os seus colegas se recusaram a votar o projeto de abuso de autoridade, que sofre oposição do Judiciário e do Ministério Público. Com o adiamento, o pleito fica para o ano que vem, quando Renan já não estará no comando da Casa. Já a decisão de Fux sobre as dez medidas contra a corrupção será submetida ao STF e podem voltar à estaca zero na Câmara, que deverá apenas decidir se referenda ou não o pacote. Com isso, os brasileiros podem até demorar mais para ver seus desejos atendidos, mas ao menos não verão aprovadas propostas completamente alheias à sua vontade.

 

“A decisão de Fux devolve a esperança a milhões de brasileiros” Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato