Um novo Brasil emergiu das últimas eleições. Elas mostraram de forma cabal que os dois polos responsáveis por jogar o País numa época de extremismo desastroso perderam força, o que abre o caminho para uma alternativa moderada no pleito presidencial de 2022. Encerrado o ciclo municipal, todos os grupos políticos já medem forças visando uma composição para o futuro. E o principal ator, o presidente Jair Bolsonaro, saiu muito menor do que entrou no processo. Além de não ter conseguido emplacar quase ninguém — dos 63 candidatos, só 11 vereadores e 5 prefeitos ganharam —, passou pelo constrangimento de ver seus afilhados esconderem seu nome na reta final. Suas grandes apostas em São Paulo e no Rio de Janeiro, Celso Russomanno e Marcelo Crivella, tiveram uma rejeição acachapante. Em São Paulo, até o titular da Secom e operador da ala ideológica do governo, Fabio Wajngarten, foi deslocado para socorrer o candidato do mandatário. Em vão. No Rio, a repulsa à figura do atual prefeito carioca, que entregará a cidade em ruínas, criou um neologismo para a situação do próprio presidente: Bolsonaro está se “crivellizando”. Ou seja, está ficando tóxico.

A lógica política mudou. O PT não compreendeu a mudança do eleitorado e o presidente não pode mais contar com o antipetismo para se manter no poder

Isso não significa, é claro, que o destino do mandatário esteja selado. Ele segue com índices razoáveis de aprovação, ainda que estes estejam em queda, principalmente nas capitais. Mas fica cada vez mais difícil acreditar que repetirá daqui a dois anos nas urnas seu triunfo personalista, sem estrutura partidária — e é preciso lembrar que está sem partido e fracassou em criar sua legenda própria. A questão é que a lógica política mudou. A radicalização bolsonarista germinou nos escombros do lulopetismo. Foi gestada na polarização, na radicalização e na criação de inimigos. E sua antítese foi dizimada nas urnas. O PT voltou à dimensão que tinha em 1985. Desde a redemocratização, pela primeira vez não governará nenhuma capital. Elegeu apenas 183 prefeitos no País, encolhendo ainda mais em relação às eleições de 2016, quando foi tragado pela ruína do governo Dilma. Era um resultado esperado. A ressaca eleitoral se segue à aposta equivocada da sua direção, controlada com mãos de ferro pelo ex-presidente Lula. Desde o Petrolão, a legenda segue um mantra: a luta pela reabilitação do seu líder máximo, “vítima do golpe do impeachment e perseguido pelas elites”. O PT não se preocupou em compreender um eleitorado que se transformou, assim como não fez mea-culpa pelo maior escândalo de corrupção da história e nem assumiu a responsabilidade pelo colapso econômico que até hoje paralisa o País.

DECEPÇÃO O bolsonarismo e o petismo amargaram derrotas em todo o País. O presidente não conseguiu eleger quase ninguém e o PT regrediu ao seu tamanho em 1985 (Crédito:Diego Vara)

O PT surgiu no final da ditadura a partir do novo sindicalismo, dentro de uma realidade econômica mais moderna e contra o peleguismo — as lideranças que se perpetuavam no domínio da esquerda. Hoje, essa base de sustentação não faz mais sentido. Não é surpresa que o PT tenha perdido de forma retumbante no seu berço político, São Bernardo do Campo, e teve como um dos únicos triunfos a vitória em Diadema, também no ABC paulista, cidade em que conquistou a sua primeira prefeitura em 1982. “O segundo turno mostrou que a esquerda sabe lutar. Nosso desempenho nas grandes cidades e a unidade que construímos em tantas delas confirma que temos uma alternativa para o Brasil”, tentou remediar a presidente da legenda, Gleisi Hoffmann. Omitiu que o partido se recusou a compor com outros partidos em São Paulo e amargou o pior resultado da história na cidade, com menos de 9% dos votos, dados a um representante do politburo, Jilmar Tatto. Mais realista, o senador Jaques Wagner (PT-BA) defendeu uma renovação: “A gente não pode ficar refém. Eu sou amigo, irmão do Lula, mas vou ficar refém dele a vida inteira? Não faz sentido”. O partido, que já perdeu a supremacia na esquerda, fica cada vez mais com a cara do velho partidão: uma agremiação que tenta ser hegemônica e só serve a própria cúpula. Por isso, o campo progressista já se afasta do petismo. Guilherme Boulos (PSOL) e Manuela D’Ávila (PCdoB) são a nova face da esquerda. Até Marília Arraes, a candidata petista que chegou ao segundo turno em Recife, é quase uma rebelde na estrutura do partido. João Campos (PSB), o mais jovem prefeito da história da capital pernambucana, com 27 anos, venceu numa guerra contra o próprio PT. São lideranças que, para crescer, abandonam cada vez mais a claque lulista. Ainda assim, com exceção de Campos, todos fracassaram.

Centro ganha espaço

Isso abre espaço para o centro em 2022. PP, PSD, DEM e PL aumentaram consideravelmente o número de prefeitos. PSDB e DEM, que triunfaram em estados-chave e populosos, podem formar uma coligação forte em 2022. Os dois, com o MDB e o PSD, vão governar mais de 50% dos habitantes no País. O governador João Doria é o principal candidato desse campo, e costurou com sucesso a união dessas legendas na capital paulista. Outra opção do centro, o apresentador Luciano Huck, ainda é uma incógnita. Tem a seu favor a projeção midiática, com fundo conservador e verniz social, mas seria mais um nome de fora da dinâmica partidária. Com o desgaste da antipolítica representada por Bolsonaro, há dúvidas se há espaço para um novo salvador da pátria. Os partidos do Centrão, turbinados nas urnas, e as legendas de esquerda, que colheram bons resultados pontuais, sonham com uma chance em 2022. Mas devem se aglutinar em torno de nomes consolidados nacionalmente.

Seja qual for a evolução do cenário, está claro que os elementos de fundo que geraram o radicalismo estão arrefecendo. O PT governou o País por 13 anos e meio. Sua recusa em ceder o poder e a irresponsabilidade fiscal ampliaram a aversão à esquerda. Desde os anos 1990, quando a hiperinflação foi derrotada pelo governo reformista do PSDB, o eleitorado tem reafirmado que rejeita aventuras econômicas ou a volta do populismo fiscal. Lula só chegou ao poder nos anos 2000 depois de renunciar ao radicalismo. Assim, o momento atual é como um retorno à conciliação. A maioria da população certamente não compartilhava as teses negacionistas, autoritárias e arquiconservadoras do capitão do baixo clero, mas aderiu à força que encarnou o antipetismo com mais eficiência. O fato de o PT transformar o colapso da sua administração e a punição criminal de seu maior líder em uma cruzada internacional só alimentou o fantasma da perpetuação petista, inflando o bolsonarismo. Essa tensão já não está presente.

Com o PT na lona, Jair Bolsonaro, seu inimigo mais estridente, se enfraquece. Seu discurso do combate à “ameaça comunista” cai no vazio. Já que exibe uma administração medíocre — quando não criminosa —, ele tende a conversar com uma parcela cada vez menor da população e terá mais dificuldades na própria extrema-direita. Os temas que o colocaram no poder já não são os mesmos. Com os escândalos criminais do seu clã cada vez mais expostos, a defesa anticorrupção sumiu. A pauta de costumes já não tem a mesma adesão. A classe média se desiludiu. Pesa ainda o problema crônico da governabilidade. Bolsonaro precisa da polarização para se manter em evidência, mas com ela arrisca perder sua cadeira no Palácio do Planalto. Ele precisou arrefecer o discurso do ódio para evitar o impeachment e governar, atraindo o Centrão e aglutinando uma base parlamentar mínima. Mas isso o afastou dos seus militantes. É cada vez mais difícil uni-los. Atualmente, a rejeição à vacinação obrigatória contra a pandemia, “em nome da liberdade individual”, tornou-se a grande bandeira do presidente para aglutinar seu público cativo, como aponta pesquisa em curso dos cientistas políticos Carlos Pereira, Amanda Medeiros e Frederico Bertholini, com apoio da FGV. Mas, daqui em diante, depois da surra nas urnas, o mandatário vai precisar moderar a cantilena reacionária para evitar se isolar ainda mais.

Democracia fortalecida

Os extremos se fortalecem em momentos de instabilidade, mas o eleitor premiou governantes que mostraram responsabilidade diante da pandemia. O índice de reeleitos cresceu, especialmente por causa dos prefeitos que mostraram coerência e firmeza na crise sanitária. Aí, o Brasil também reproduziu a mesma dinâmica que os EUA exibiram em novembro. A resposta errática à pandemia foi uma das principais causas da derrota de Donald Trump e do triunfo de Joe Biden. O democrata é um nome do establishment político que representa a experiência e o comedimento. Como também aconteceu nos EUA, outro elemento importante para frear os fanáticos foi o maior controle das redes sociais. Lá, isso foi determinante para desarmar a máquina de desinformação de Trump. Aqui, teve efeito semelhante nas hostes bolsonaristas. As redes estiveram mais atentas e coibiram a propaganda de ódio e a propagação de notícias falsas. Ainda mais importante, os inquéritos do STF que investigam os atos antidemocráticos e as fake news estão produzindo efeitos práticos e fecham o cerco sobre as milícias digitais. A lisura do pleito marcou um anticlímax para os fanáticos. Ao invés de confrontos e instabilidade, houve uma campanha mais civilizada em cidades como São Paulo. Os debates também saíram do patamar puramente ideológico para abordar planos de governo e propostas concretas. Que essa tendência se firme até o próximo ciclo eleitoral. É uma lição para as forças que tentaram, mas não conseguiram, abalar a democracia. Precisarão se reinventar para sobreviver. O bolsonarismo ganhou tração prometendo acabar com a velha política, mas reuniu os piores vícios da nossa história institucional, inclusive a ameaça de retrocesso autoritário. O petismo emergiu como esperança para diminuir a desigualdade e acabar com os vícios e crimes na administração pública. Mas entregou a maior recessão da história e um esquema gigantesco de corrupção que deformou a própria democracia. Cansado de ilusões e promessas levianas, o eleitor mostrou que espera mais realismo. No mundo, como no Brasil, é hora de voltar à normalidade e trilhar um caminho mais construtivo.