A gestão de Barroso à frente do TSE foi marcada pela ação dos que se valeram de notícias fraudulentas e das milícias digitais para influenciar no resultado das eleições e que tiveram o próprio presidente e seus filhos envolvidos nessa máquina de ódio e de desinformação. Seu esforço foi no sentido de reduzir a disseminação de fake news nas mídias sociais na Internet, e, assim, garantir “eleições limpas e seguras em 2020”, ao contrário do que aconteceu em 2018, com a eleição de Bolsonaro, onde o controle dessa ação criminosa correu mais frouxa. “Foram as primeiras eleições em que as mídias sociais tiveram um peso relevante e foram amplamente utilizadas para a difusão de ódio, desinformação, notícias fraudulentas e teorias conspiratórias”, disse o ministro à ISTOÉ. Por isso mesmo ele destaca a importância da imprensa na cobertura dos fatos com o compromisso de divulgar a verdade. “A imprensa profissional é um dos antídotos contra esse mundo das mentiras e noticiais fraudulentas”, diz o magistrado, de 63 anos, considerado politicamente de esquerda. Para ele, essas mídias sociais chegaram a ter um papel importante nas eleições em muitos países, tendo havido “casos graves de manipulação grosseira de notícias e informações, inclusive com ingerência externa”. Em razão disso, o ministro explica ter montado “uma estratégia de guerra” para enfrentar a desinformação voltada contra o processo eleitoral na campanha deste ano, cujo processo será tocado pela nova direção do TSE, com os ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes.

“A liberdade de expressão precisa ser protegida contra os que a utilizam para destruí-la”

Isso não significa dizer que o ministro defenda o controle ou censura de conteúdos. Pelo contrário, ele propõe combater com mão de ferro os criminosos que atuam nesse submundo da Internet e a identificação de contas “inautênticas”, como o uso de perfis falsos ou duplicados, robôs e trolls (gente contratada para amplificar as notícias falsas). Nesse sentido, o TSE fez parcerias com o Whatsapp, Google (YouTube), Instagram, Facebook, Twitter, TikTok e Kwai, entre outros, para que essas empresas se comprometam a não reproduzirem notícias falsas.

Apesar de ter feito um trabalho que marcará a história da Justiça Eleitoral, Barroso lamenta ter gasto suas energias no ano passado para a discussão do voto impresso, quando precisou enfrentar os que trabalharam para inviabilizar a urna eletrônica, tendo o ex-capitão como o maior responsável por esse debate insano. “Boa parte do ano 2021 foi gasto com uma discussão desnecessária que significaria um retrocesso: a volta ao voto impresso, com contagem pública manual. Solução inadequada para um problema inexistente. O sistema de votação eletrônica brasileiro é seguro, transparente e auditável.” Nesse cenário, segundo ele, a rediscussão do voto impresso agora “só tem por finalidade tumultuar o processo eleitoral”.

“A veiculação de mentiras deliberadas e de teorias conspiratórias são comportamentos inaceitáveis”

A parte mais sensível do seu pronunciamento se refere ao envolvimento do presidente em atos antidemocráticos e ataques ao Poder Judiciário. Ele enumera sete “ações concretas e preocupantes” das ameaças que o presidente fez às instituições “e que acreditávamos já haver nos livrado”. Para Barroso, não foram apenas exaltações verbais à ditadura e à tortura. Ele listou o ato na porta do Comando do Exército, quando Bolsonaro e seus seguidores pediram a volta da ditadura militar e o fechamento do Congresso e do Supremo; desfile dos tanques de guerra na Praça dos Três Poderes com claros propósitos intimidatórios; ordem para que caças sobrevoassem a Praça dos Três Poderes com a finalidade de quebrar as vidraças do STF, em ameaça a seus integrantes; comparecimento à manifestação de Sete de Setembro, com ofensas a ministros da Corte e ameaças de não mais cumprir decisões judiciais; pedido de impeachment de ministro do STF em razão de decisões judiciais que desagradavam; ameaça de não renovação de concessão de emissora que faz jornalismo independente; agressões verbais a jornalistas e órgãos de imprensa. O magistrado explica que todas as ameaças revelam “a ascensão do populismo extremista e autoritário, rescendendo o fascismo. A preservação da democracia e o respeito às instituições passaram a ser ativos valiosos, indispensáveis para quem queira ser um fator global relevante”.

“Não há remédio na farmacologia jurídica contra maus perdedores”

Por todos esses desatinos é que o ex-presidente do TSE lamenta a perda de credibilidade do Brasil perante os demais países do mundo. “Não é de surpreender que dirigentes brasileiros não sejam hoje bem-vindos em nenhum país democrático e desenvolvido do mundo. E, nos eventos multilaterais, vagam pelos corredores e calçadas sem serem recebidos, acumulando recusas em pedidos de reuniões bilaterais. A marca Brasil vive um momento de deprimente desvalorização mundial. Passamos de um País querido e admirado internacionalmente a um País olhado com desconfiança e desprezo.” Resumindo: os brasileiros terão oportunidade de construir um novo País a partir das eleições de outubro.

Três em um

Divulgação

De forma pouco usual, mas não inédita, o TSE terá três presidentes este ano, durante uma das eleições mais tensas da história. E estarão na trincheira de luta contra os crimes cometidos no processo eleitoral exatamente os três ministros mais combativos do tribunal: Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes (da esq. para a dir.). Barroso concluiu seu mandato de dois anos como presidente da instituição no último dia 22, transmitindo o cargo para Edson Fachin, que era seu vice e agora ficará no cargo de presidente até agosto, quando também completa dois anos no TSE. Depois de agosto, será a vez de Alexandre de Moraes assumir a presidência do órgão, às vésperas da votação, que acontecerá em outubro. Ele fica até setembro de 2023. A situação não é excepcional. Em 2018, ela se repetiu, com Gilmar Mendes, Luiz Fux e Rosa Weber.

O general sai de cena

RAZÕES PESSOAIS O general Fernando Azevedo alegou motivos de saúde para não assumir direção-geral do TSE (Crédito:Adriano Machado)

Quando a direção do TSE anunciou que o general Fernando Azevedo assumiria a direção-geral da instituição, houve um grande burburinho nas Forças Armadas e reação de descontentamento por parte do presidente Bolsonaro, um militarista convicto que impôs mais de 6 mil oficiais das Forças Armadas em cargos estratégicos de seu governo, incluindo mais da metade de seus ministros. O objetivo dos ministros do tribunal eleitoral era colocar um militar de alta patente no cargo para mostrar a Bolsonaro que a instituição estaria blindada contra seus ataques ao sistema eleitoral, e que pudessem, por ventura, levar o presidente a contestar o resultado do pleito caso perca em outubro, repetindo o gesto de Trump nos EUA. E, mais do que isso, os ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes, atual presidente e vice-presidente da instituição, a quem coube a escolha do general, desejaram ter no cargo de diretor-geral alguém do Exército com peso e que já havia sido, inclusive, ministro da Defesa de Bolsonaro. Um recado claro ao presidente. Azevedo, contudo, surpreendeu a todos ao anunciar, na quinta-feira, 17, a sua desistência de assumir o posto. “Ao desistir de aceitar o cargo, ele disse que era, predominantemente, por motivos de saúde. Não tenho razão para crer de forma diferente. Embora ele seja um militar da reserva, foi convidado por suas virtudes pessoais”, disse Barroso, que foi presidente do TSE até a semana passada. O general já trabalhou no STF quando Dias Toffoli presidiu a instituição.

Entrevista ministro Luís Roberto Barroso
“O voto impresso é uma bobagem”

É possível evitar que as eleições de 2022 sejam manipuladas pelas mídias sociais, inclusive com ingerências externas?
Para minimizar o impacto das notícias fraudulentas, o TSE fez parceria com as principais plataformas tecnológicas e com as principais agências de checagem de notícias. O ajuste visa, sobretudo, a enfrentar os comportamentos coordenados inautênticos, que consistem no uso de robôs, perfis falsos e trolls (pessoas contratadas para difundir mentiras) para amplificar o alcance das fake news. Nos Estados Unidos, ficou comprovada a interferência estrangeira a favor do presidente Trump. Pode acontecer em qualquer lugar do mundo.

Como o senhor vê as denúncias investigadas pela PF, com autorização do STF, sobre os atos antidemocráticos e fake News, e que abordam a operação das milícias digitais em que estariam envolvidos o presidente da República e seus filhos, como é o caso de Carlos?
Eu não falo de pessoas, até porque não conheço o inquérito. Mas a conclusão da delegada Denisse Ribeiro foi a de que existe uma central de disseminação de ódio, mentiras e crimes contra a honra de adversários. O ataque às pessoas em lugar do debate de ideias é um comportamento penosamente primitivo. Nessa matéria, o mundo e o Brasil vivem um momento triste de retrocesso civilizatório.

O senhor diz que 2021 foi perdido com o debate desnecessário sobre a segurança das urnas eletrônicas e que o presidente só quis tumultuar o processo eleitoral. Foi isso mesmo?
Eu lido com fatos objetivos. Não tenho como controlar o imaginário das pessoas ou suas intenções. Essa bobagem de voto impresso nos desviou de discussões importantes sobre o sistema eleitoral, sobre mais mulheres nos órgãos dirigentes dos partidos e no Congresso e sobre critérios de distribuição do fundo eleitoral, entre outras. Tempo gasto inutilmente. A realidade é que jamais houve qualquer fraude comprovada no sistema de urnas eletrônicas, que vigora desde 1996. Voto impresso, portanto, seria uma solução ruim para um problema inexistente. A essa altura, eu posso afirmar que não vai haver voto impresso, por muitas razões: o Supremo disse ser inconstitucional, o Congresso não aprovou e não há tempo hábil para mudar tudo e providenciar impressoras. De modo que voltar a essa discussão só pode trazer gasto desnecessário de energia.

Acredita que o presidente pode adotar a mesma postura do ex-presidente Trump que estimulou a invasão do Capitólio para contestar o resultado das eleições alegando terem sido roubadas?
Não creio que possa acontecer aqui algo parecido. Os sinais negativos que ocorreram nos últimos tempos foram alvo de reação imediata do Congresso, do Judiciário, da imprensa e da sociedade civil. Já superamos os ciclos do atraso. Mas, claro, é sempre bom estarmos atentos. Gosto de citar uma frase de uma música da banda Legião Urbana que diz: “Não tenho medo de escuro, mas deixo as luzes acesas”.

Acha que esses ataques ao sistema eleitoral e ameaças a ministros do STF objetivaram desestabilizar a democracia?
Ainda há muita gente que não entende a importância da democracia para o desenvolvimento do País e para a sua inserção no mundo. É preciso distinguir o direito de criticar severamente as instituições, de um lado, e as atitudes de ameaça à sua existência. O STF, como qualquer instituição numa democracia, é passível de crítica. E eu mesmo não acho que o Supremo acerte sempre. Mas a divergência, por mais ríspida que seja, não se confunde com incitação ao crime, seja de invasão das dependências do Tribunal seja da agressão à integridade física dos seus integrantes. Quanto ao sistema eleitoral, qualquer pessoa pode não gostar dele, criticá-lo ou defender modelo diferente. Mas não pode fazer uma acusação falsa de fraude, visando desacreditar o sistema e atacar a democracia. Há uma frase famosa de um julgado da Suprema Corte americana, sobre liberdade de expressão, no qual se disse: “Ninguém é livre para gritar falsamente ‘fogo!’ num teatro lotado”.

No seu discurso, o senhor enumerou sete ações tomadas pelo presidente para ameaçar a democracia. O senhor diz que não foram exaltações verbais à ditadura e à tortura, mas ações concretas…
De novo, eu não quero especular sobre as intenções de quem quer que seja. Mas, objetivamente, foram fatos preocupantes. Manifestação na porta do QG do Exército, em que se pedia o fechamento do Congresso e do Supremo; desfile de tanques de guerra na Praça dos Três Poderes; manifestação no Sete de Setembro com ofensas a ministros do STF e ameaça de descumprimento de decisões judiciais; ataques à Justiça Eleitoral e seus integrantes, sem qualquer fundamento real; declarações agressivas em relação a jornalistas e a meios de comunicação, com ameaças de não renovação de concessão… Esses não são fatos corriqueiros e é natural que os democratas se mostrem preocupados.

Entende que estamos livres dessa ascensão populista e extremista que estava tomando conta do País?
O mundo viveu uma onda populista, extremista e autoritária, marcada pela intolerância, pela desqualificação dos que pensam diferente e ameaças às minorias. O Brasil está no mundo e não é imune a essa onda. Mas há no Brasil toda uma geração que lutou pela democracia e considera a sua preservação a grande causa a ser defendida. Por isso, mesmo que houvesse intenções, não creio que haja chance real de quebra da legalidade constitucional e de reimplantação de uma ditadura. A história anda para frente e não para trás.