Ela sempre foi determinada. Aos 12 anos, Luiza Brunet já trabalhava como empregada doméstica. Saiu do Mato Grosso do Sul com os pais para tentar a vida no Rio de Janeiro e arrumou um emprego de vendedora. Com uma beleza estonteante, aos 16 anos virou modelo e logo explodiu como símbolo sexual, aparecendo nas capas das maiores revistas nacionais. O tempo parecia não passar para Luiza, que seguiu atuante nos carnavais até 2012. Mas as coisas começaram a degringolar. Um tumor a obrigou a fazer uma histerectomia e, em 2016, o fim de um relacionamento abusivo foi parar nas páginas policiais dos jornais. A mulher que encantou o Brasil passou a encarnar a dor de brasileiras comuns, que sofrem caladas com a fúria do companheiro. Seu espírito de luta falou mais alto e hoje, aos 58 anos, após ganhar o processo contra o ex-companheiro, o bilionário Lírio Parisotto, que a espancou, Luiza se tornou uma ativista, ajudando mulheres vítimas de violência. “Desde o primeiro momento, quando a mulher é oprimida pelo namorado ou marido, já há indícios de uma relação abusiva”, disse a ex-modelo em entrevista à ISTOÉ.

Quando você viu que seu relacionamento era abusivo?
Eu já vinha sendo machucada psicologicamente e de outras formas devido ao comportamento dele. Mas, como outras mulheres, não entendia que era um sinal de perigo. No meu caso culminou com a agressão, mas vários acabam em morte. A coragem veio após o ataque. Não queria me tornar só uma estatística. Como embaixadora do Instituto Avon há 10, anos e com acesso à informação, eu tinha responsabilidade.

Dá para a mulher perceber a relação abusiva antes de chegar a limites críticos?
Desde o primeiro momento, quando ela é oprimida pelo namorado ou marido, há indícios de uma relação abusiva. Quando ele a destrata em público, proíbe de fazer coisas, empurra, ameaça. Isso começa sutilmente e a mulher vai tornando esse comportamento natural. Acha que ele estava nervoso porque pegou trânsito na rua, a criança estava chorando. E vai dando desculpas. Mas não funciona. Temos de nos posicionar rapidamente e sair do relacionamento abusivo o quanto antes, porque, com frequência, há risco de vida. Quando começa a dar ruim, vai dar ruim até o final.

Como sair disso?
Precisa sair o quanto antes. Claro que isso implica em uma série de dores, mas o importante é sair viva e com dignidade. Precisa também denunciar numa delegacia, porque mesmo separados, a violência muitas vezes continua. E no futuro, se acontecer algo pior, essa denúncia ajuda a comprovar que a violência vinha crescendo.

Você foi de empregada doméstica a símbolo sexual. Sua determinação ajuda na defesa das mulheres?
Ajuda muito. Eu acho que sempre fui muito determinada. Fui criada na roça e tive origem humilde. Estudei pouco, e com 12 anos trabalhava numa casa de família. Viemos para o Rio e só conseguia trabalhar em subempregos, mas não parava muito porque enfrentava abusos moral ou sexual. Ou cedia aos desejos do patrão ou buscava outras coisas. Aos 16 anos fui emancipada para casar e achei que seria dona da minha vida. Foi bom, meu sonho era ser cabeleireira, mas comecei a trabalhar como modelo sem querer. Meu primeiro marido era de classe média alta, tinha 28 e eu, 16. A família dele não me aceitou, por eu ser pobre e do subúrbio. Fiquei casada seis anos.

Você sofreu violência nos outros casamentos?
Violência física, não. Mas toda mulher passa por várias violações num casamento. Difícil uma que não tenha tido. Com o pai dos meus filhos houve uma fase de adaptação, porque me tornei um símbolo sexual. Ele tinha dificuldade de entender a mulher posando de maiô. Mas, com o tempo, ele compreendeu a divisão entre a profissional e a mulher.

Na moda você também contrariava padrões?
Antes de mim, muitas eram esquálidas. Mas teve uma modelo que me inspirou muito: a Rose Di Primo. Fiquei impressionada desde que a vi na capa de uma revista, quando cheguei ao Rio. E me tornei modelo pensando nessa mulher. Fui valorizada exatamente porque era bem brasileira, com mais curvas. Quando virei modelo da Dijon foi uma explosão. Fiquei lá por anos, até que ele associou meu nome à marca e eu tive de brigar por isso também. Fui para a Europa e tive de emagrecer para entrar nos padrões. Mas quando voltei passei para outro patamar, após fazer campanhas para grandes grifes.

Depois de tantas lutas você pensou que passaria por uma violência dessas?
Nenhuma mulher imagina viver um relacionamento abusivo ou chegar à violência real. Mas aconteceu comigo e acontece com muitas mulheres. A grande mudança foi o fato de falar sobre a violação, porque minha atitude foi importante para outras vítimas no Brasil. Na semana que fiz a denúncia, estava na televisão o tempo todo. E isso levantou a discussão.

Foi difícil tomar a decisão de denunciar?
Sim, muito. Por isso, acontecem tragédias como a da mulher na França, esfaqueada pelo companheiro em Paris. Estamos tentando trazer o corpo dela para o Brasil. Antes de morrer, ela escreveu numa rede social; não case e não fique com um homem que quer te matar. E dois dias depois ele a matou.

Qual a maior dificuldade que você enfrentou?
O mais difícil foi ser julgada no “tribunal virtual”. Um estardalhaço incrível sobre minha vida e minha moral. Passei de símbolo de beleza para vítima e outras coisas piores. Mas eu estava forte para arcar com as conseqüências e disposta a seguir em frente, porque quando se faz uma denúncia no Brasil o processo é demorado. E eu só tive resposta agora, quatro anos depois. O Lírio (Parisotto) recorreu em todas as instâncias, mas foi condenado. Isso incentiva outras mulheres a não desistirem.

As redes sociais deram voz para todo mundo. Como esse tribunal afetou a sua vida?
Esse tribunal da internet mata. Veja o caso dessa menina de 10 anos que teve aborto autorizado e foi julgada como uma delinquente. A gente sabe, trabalhando com mulheres de todo o País, que tem muitas que se suicidam porque não aguentam. E quem são essas pessoas que nem te conhecem e te julgam, sem nunca ter visto você apanhar? A rede social ajuda em muitos casos, mas o julgamento e o comportamento humano são um absurdo. Ela abriu as porteiras da falta de limites. Eu mesma tive de abrir processos contra duas mulheres que me atacaram sem saber o que passei na minha vida.

Você ganhou o processo e ele foi obrigado a cumprir um ano de prisão em regime aberto, além de um ano de
serviços comunitários. Achou a pena suficiente?
Foi bom para que as mulheres vejam e não desistam de fazer a denúncia. Mas a lei tem de ser mudada. Temos uma das melhores leis do mundo, a Maria da Penha, mas ela não inclui a punição. Quem determina a punição é a Justiça, que é feita por homens. Daí a necessidade de mais mulheres na política.

Você pensa em entrar na política?
Seria uma forma de acelerar projetos. Mas ainda me sinto mais confortável como ativista. Acho que quando você entra na política tudo muda. Você perde liberdade para falar e lutar.

O que você tem feito na pandemia?
Continuo com o grupo de mulheres, faço lives. E agora estou tentando trazer o corpo dessa brasileira assassinada em Paris. Até falei até com a Damares (Alves) para ajudar.

Como é o diálogo com a ministra Damares?
Acho que quando há problemas reais, como a violência, os líderes não podem envolver a religião. O João de Deus usava a religião para fazer coisas horríveis, assim como alguns pastores. Não gosto de misturar as coisas. Sou uma ativista sem partido político. Sou apolítica e quero contribuir como puder com as mulheres. Esse é meu foco. Não julgo ninguém. Eu me preocupo com minha pauta. Ajudo as mulheres a se conectarem com a pessoa que está na liderança no momento. E agora é a Damares, e ela tem me ajudado. O foco não sou eu nem ela, são as mulheres.

Elas pedem ajuda pela rede?
Esse é o outro lado. Recebo muitos pedidos de ajuda, até porque deixo meu e-mail disponível. Uma mulher no interior da Bahia dizia que o homem com quem vivia tinha muito poder na cidade e ela não conseguia nem fazer uma denúncia para conseguir medidas protetivas. Nós a ajudamos.

E o caso do jogador Robinho?
É mais um caso grave de abuso. Infelizmente é mais um homem que teve a chance fazer diferente, mas não fez. Ele mostra um comportamento machista como todo agressor, desqualificando, objetificando e desrespeitando as mulheres, além de atacar aquelas que enfrentam a violência de gênero.

Sua filha também é modelo. A nova geração é diferente?
Elas são mais preparadas para o que virá. E os homens estão mudando e entendem o sofrimento das mulheres, porque sabem que poderão ter filhas que venham a sofrer. Educação é primordial, inclusive a sexual, que precisa ser ensinada nas escolas.

Na pandemia, muitas mulheres viram seu refúgio virar calvário. Quando isso vai acabar?
Aumentou exponencialmente a violação não só de mulheres, mas também de crianças. E, se dizem que só 10% fazem a denúncia, onde estão os outros casos? A subnotificação é muito grande. Minha mãe sofreu violência e nunca denunciou e o mesmo aconteceu com minha avó. Quando chegou minha vez tive de denunciar. As mulheres precisam ter coragem.

Você diz ter orgulho da mulher que se tornou. Isso inclui a maturidade?
Nunca tive problemas com idade. Quando a mulher é muito focada na beleza externa ela sofre muito. Mas não dá para ser jovenzinha a vida inteira. Respeito quem faz procedimentos de beleza, mas acho que ela também tem de se requalificar. Envelhecer não é fácil. Fiz uma histerectomia total, por causa de um tumor, em 2012. A vida da mulher é uma cicatriz eterna.

Quais são seus planos?
Com o final da pandemia, quero voltar a viajar pelo interior do Brasil. Faço trabalho voluntário, ouço mulheres, que se tornaram mães muito jovens, tem de 10 a 12 filhos, e nunca puderam sonhar. Falta água, comida e tudo. É muito distante do que as pessoas vivem nas cidades. As pessoas não têm noção do que é o Brasil.

Você está namorando de novo?
Tenho até intenção. Mas encontrar uma pessoa legal está difícil. E hoje acho melhor estar sozinha do que mal acompanhada. Faço coisas que me dão prazer e o ativismo preencheu uma lacuna importante na minha vida.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias