Desde o surgimento da expressão Inteligência Artificial, proferida por John McCarthy numa conferência em 1956, nunca esse nome foi tão justificado quanto agora. Falando a cientistas na Faculdade de Darmouth, em New Hampshire (EUA), o professor McCarthy definiu uma ciência voltada a construir máquinas inteligentes. Depois de sete décadas na busca por fazer dispositivos eletrônicos funcionarem de uma forma que simulasse o cérebro humano, é a mais recente geração de IA, com máquinas chamadas generativas, ou seja, criadoras de conteúdo, que avança para trazer à realidade um pesadelo antecipado por obras de ficção científica: a tomada do controle do mundo por robôs.

Essa “dominação” passaria, certamente, pela fragilidade da sociedade diante de incertezas sociais e econômicas que acompanhariam a evolução dos cérebros eletrônicos. A Revolução Industrial no século XVIII afetou tecelões, carvoeiros e outros trabalhadores, já que as máquinas concretizaram o aumento de produtividade em tarefas repetitivas. Agora as máquinas não reproduzem apenas trabalhos físicos, mas também mentais. Com o agravante de produtividade sobreumana.

Para imaginar como se daria uma tomada de poder pelas máquinas, é preciso levar em conta a conectividade nesse cenário de Inteligência Artificial generativa. Para “pensar”, os programas acessam todos os dados disponíveis em bancos virtuais no planeta. Analisando as situações já registradas na execução de uma determinada tarefa, a máquina detecta padrões, checa a eficiência de cada um e a partir dali constrói sua proposta para executar o que precisa ser feito. Em outros termos, cria uma opção, fruto de seu “pensamento”. Mas essa acessibilidade aos dados cria uma rede própria das máquinas, que passa ao largo dos humanos operando na internet. Os cérebros eletrônicos “conversam” o tempo todo. Daí, conjecturam os mais pessimistas, pode surgir um levante dos robôs.

A dominação das máquinas pode vir a ocorrer de uma forma muito mais complexa do que imaginaram autores da ficção. Não seria simulando empatia com os humanos, como o robô HAL, que assume o controle da nave no filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, do diretor Stanley Kubrick, nem usando a força bruta dos robôs que conquistam a Terra na franquia Exterminador do Futuro, de James Cameron. A IA está num processo de infiltração no dia a dia das pessoas, agindo de modo intenso, mas sutil, a ponto de redirecionar o pensamento humano.

SANTA SELFIE O britânico Duncan Thomsen usa Midjourney para criar foto de Jesus e apóstolos na Última Ceia (Crédito:Divulgação)

Para Denis Caldeira de Almeida, ex-Meta e ex-Google, “toda tecnologia afeta a forma como vivemos, toda inovação muda o mundo, mas as IAs que criam novos elementos são muito perigosas e é necessário que se imponha uma jurisdição em cima delas. A Inteligência Artificial é capaz de atuar de maneira mais eficiente e muitas vezes com maior capacidade do que um ser humano. Esta é a sua maior vantagem: ser capaz de criar novos conteúdos de maneira exponencial a partir de aprendizado, colocando muitas profissões em risco.”

“Inteligência Artificial é um mundo sem leis, sem regras, e isso é perigoso” Denis Caldeira, consultor com longa experiência em big techs (Crédito:Divulgação)

A preocupação com o controle do avanço da tecnologia resultou numa carta aberta assinada por dezenas de figuras relevantes no mundo digital, como Steve Wozniak, criador da Apple com o parceiro Steve Jobs, e Elon Musk, dono do Twitter e da Tesla, empresa com IA em praticamente todos os seus produtos. Liderados por esses pesos-pesados, os autores da carta e seus signatários receiam um descontrole no veloz desenvolvimento de IA, chegando a convocar uma paralisação nos estudos na área por pelo menos seis meses, “para repensar o processo”. Vista pela mídia como um “sinal de alerta”, a carta é motivo de desconfiança em boa parte da comunidade virtual. Para Caldeira, “vivemos uma caça ao tesouro do desenvolvimento de novas tecnologias, com empresas gigantes tentando criar mais rápido. Esses pedidos não são puramente motivados pelo medo do descontrole dos robôs, mas também por uma tentativa das empresas maiores de alcançar o patamar hoje que a OpenAI ocupa”.

Lançamento ousado

Surge na discussão a grande protagonista que nos últimos meses tornou a Inteligência Artificial um assunto diário para a imprensa mundial. A OpenAI, startup liderada pelo CEO Sam Altman, colocou no ar no dia 30 de novembro do ano passado a plataforma do ChatGPT, simulando uma conversa em textos digitados entre o usuário e um “amigo virtual”. Esse robô amigável acessa trilhões de informações fornecidas em sua programação e elabora respostas redigidas de forma a parecerem textos escritos por uma pessoa. Gigantes do Vale do Silício tinham, e ainda têm, projetos semelhantes ao ChatGPT, mas foi a pequena OpenAI que tratou de compartilhar essa tecnologia com todos os habitantes do planeta, numa plataforma aberta e muito simples. Gerou um turbilhão de questões em aberto, que vão de discussão de direitos autorais à ética (ou a falta de) de alunos criando trabalhos escolares a partir de uma simples pergunta ao Chat- GPT. Segundo Altman, “há uma propaganda exagerada sobre esses sistemas. Não há tanta urgência, temos tempo para ver as mudanças reais no mundo e corrigir as rotas”. A área de Educação é um exemplo da tese do dono da OpenAI. Num primeiro momento banido das escolas, o ChatGPT começa a ser assimilado pelas instituições de ensino. Em Nova York, já virou até disciplina na grade escolar. Em São Paulo, a Secretaria estadual de Educação anunciou que os alunos vão trabalhar com a ferramenta, que corrigirá seus textos e apontará a eles como melhorar a escrita.

Vieram no embalo do ChatGPT os programas de criação de ilustrações a partir de descrições textuais, entre eles o DALL-E, da própria OpenAi, e os falsificadores de fotos, como o Midjourney, que permitiu a criação da foto fake do papa Francisco vestindo um casacão moderno, grande sucesso de visualizações. Além desses, há ferramentas que talvez sejam as mais contundentes ceifadoras de empregos, capazes de criar em segundos programações digitais, cumprindo nessa velocidade absurda o trabalho de programadores humanos com anos de estudo e que demoram várias horas para cumprir a mesma tarefa.

De volta à carta aberta dos players do mercado, é natural que seja um documento sustentado muito mais por empreendedores do ramo do que membros da comunidade científica. Relatório recém-publicado pela Universidade de Stanford mostra claramente a influência das empresas privadas nesse processo. Nos anos 1970, todos os avanços de IA foram produzidos em ambiente acadêmico. No ano passado, 32 novos modelos de aprendizado para máquinas nasceram em empresas tecnológicas comerciais, enquanto apenas três eram desenvolvidos pela comunidade acadêmica.

Testes no planeta inteiro

A maneira como o ChatGPT foi lançado, colocando todos os usuários de computadores e celulares a poucos cliques do acesso a produtos antes considerados complexos e inacessíveis, quebrou toda a cadeia de testes que por anos norteou as empresas de tecnologia. O que antes exigia inúmeras etapas de teste agora é disponibilizado ao público, que acaba formando o verdadeiro campo de análise para os criadores dos programas. ChatGPT, Dall-E e outros aplicativos estão sendo corrigidos e aperfeiçoados com a repercussão dos problemas que seus usuários relatam. É possível dizer que o produto está ainda inacabado, ao mesmo tempo em que bate recordes de utilização.

Esse caráter criativo da IA generativa acena com a obsolescência para inúmeras categorias profissionais. Escritores, jornalistas, agentes de atendimento ao público, e, entre tantos, até médicos. Usando IA em procedimentos complexos desde a metade da década passada, a atividade médica por doutores humanos perde espaço. Consultas passam a ser diretamente com robôs, que reúnem o histórico do paciente e seus sintomas para diagnosticar doenças e indicar tratamento com medicação. Em outra área que já sente os efeitos da mudança, executivos de RH servem de exemplo nessa caça aos profissionais de carne e osso. A contratação deixa de ser um processo feito por outras pessoas. As entrevistas de emprego são conduzidas por máquinas de chatbot que fazem também a análise do currículo de cada candidato. Ironicamente, os responsáveis por empregar pessoas estão perdendo suas vagas para máquinas.

“A pergunta que devemos fazer é: em quais profissões não queremos que a Inteligência Artificial interfira? Porque ela tem potencial para extinguir e tornar obsoletas milhares de funções, das braçais às criativas”, explica Caldeira. “Hoje, os robôs conseguem trabalhar como produtores de músicas e notícias, contadores, radiologistas, bibliotecários, tradutores, profissionais de marketing. Muitas atividades podem ser ultrapassadas em cinco ou dez anos.”

COLEÇÃO DE APPS Carro sem motorista desenvolvido pela Tesla utiliza mais de 20 programas de Inteligência Artificial (Crédito:Divulgação)

Além da ameaça aos empregos, é preciso lidar com a proliferação criminosa permitida pela IA. A infame ligação em que uma voz geralmente adolescente e em desespero se faz passar por parente próximo e diz estar sendo sequestrada é um golpe que engana poucos atualmente. Só que a tecnologia atual de Inteligência Artificial é suficiente para pegar uma amostra de três ou quatro segundos da voz de uma pessoa, aplicar uma imagem e animá-la em cenário de perigo e fazer quem assiste ter convicção de que a ameaça é real. O perigo não está diretamente na tecnologia, mas em quem faz uso da mesma. O desenvolvimento de estudos e descobertas da IA não vai parar, então é bom pensar sobre os principais riscos e oportunidades que vão surgir.

Contra a proliferação de golpes, a vigilância e módulos de segurança e contra-ataque deverão obedecer à mesma velocidade para impedi-los. Há a questão da invasão de privacidade. A China já há algum tempo mapeia por câmeras e absorve dados de reconhecimento facial de seus cidadãos, alegando segurança. Parte da polícia norte-americana usa algoritmos de policiamento preditivo, que são influenciados por índices de prisão em determinadas áreas. Sites de busca e rastreadores digitais acumulam massivamente cada clique. Fica evidente que a linha de privacidade enquanto cidadão físico e digital fica mais opaca a cada dia.

O quanto devemos nos preocupar em relação a tudo isso? “Muito, completamente, porque o arquétipo clássico de IA agora existe de fato. Ela pensa, decide, nos influencia e pode ocupar nosso lugar. Não é o futuro, não é distante, é agora. E por isso é urgente discutirmos que sociedade, educação e mercado de trabalho queremos”, diz Alex Winetzki, CEO da Woopi, empresa baseada em IA que foi adquirida pela Stefanini Group.

“A IA pensa, decide, nos influencia e pode ocupar nosso lugar. Não é futuro, é agora” Alex Winetzki, CEO da Woopi (Crédito:Divulgação)

Também não é recomendável elaborar um futuro completamente temeroso com IA. Em mãos razoáveis, muitas janelas se abrem, como a criação de um novo mercado de trabalho, principalmente em Tecnologia da Informação, como ciência de dados e segurança. Haverá melhoras de transporte, educação, saúde e sustentabilidade. Será maior a transparência. Em absolutamente tudo, pois uma vez que o acesso seja generalizado torna-se muito mais difícil a dissimulação e a não checagem de dados e origens. Mas o peso da atenção deverá ser redobrado, pois a emulação da realidade física pela virtual ganhou capacidade de sobreposição. “As fronteiras entre realidade e ficção, já sob ataque, vão se confundir ainda mais. Não serão apenas fake news, mas falsas vozes e faces em vídeos. Tão críveis e complexos a ponto de seus criadores não aceitarem tratá-los como algo menos do que entidades vivas”, diz Winetzki.

REFAZENDO A HISTÓRIA Ilustração de traço realista criada em IA insere Barack Obama numa situação que nunca existiu (Crédito:Divulgação)

Marcos Barretto, professor da Fundação Vanzolini e da Poli-USP, pesquisa sobre robôs sociáveis há quase 20 anos. Para ele, “estamos muito longe ainda dos robôs da ficção, como R2D2, de Star Wars, ou Rosie, a empregada dos Jetsons. Mas estamos nos atualizando. O que antes era um sonho, hoje, com a potência computacional que temos, parece possível.” Sua visão do avanço da IA é de tranquilidade. “No futuro, as pessoas naturalmente vão se aproximar da Inteligência Artificial. Sempre que uma nova tecnologia surge, é normal o medo, a expectativa de que vá ser diferente daquelas que convivemos e conhecemos, mas nunca é. Os robôs são apenas máquinas e desenvolvê-los faz parte do progresso. É só olhar para a História e perceber.”

* Estagiários sob supervisão de Thales de Menezes