As medidas adotadas por Doria não eliminaram a tragédia, mas impediram que o coronavírus se expandisse em uma velocidade maior. Na última quarta-feira 1, o Brasil já contabilizava 240 mortes, em duas semanas. Esses números, contudo, estão muito distantes dos registrados nos países mais afetados pela doença e que demoraram mais tempo para tomar medidas rigorosas de confinamento, como as determinadas pelo governador paulista. Nos EUA, o presidente Trump, à exemplo de Bolsonaro, também fez pouco caso da doença no início e só mudou de postura depois que a peste atingiu em cheio seu país: 4 mil americanos já morreram e mais de 175 mil pessoas foram contaminadas — um recorde mundial. Na Itália, onde o prefeito de Milão, Giuseppe Sala, por exemplo, apoiou a campanha “Milão não para”, a doença já matou 12.500 pessoas. O alcaide, porém, recuou e pediu desculpas.

No Brasil, o presidente desrespeita as autoridades sanitárias, incluindo seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e continua jogando pesado contra tudo e contra todos na tentativa de desmontar a operação de guerra desenvolvida pelos Estados para conter o avanço do vírus. Bolsonaro pensa até em baixar um decreto mandando todo mundo de volta às ruas. “Se Bolsonaro fizer isso, 24 dos 27 governadores vão entrar no STF para impedir que isso aconteça. Essa será uma atitude criminosa e homicida. Estimular que as pessoas saiam do confinamento é atentar contra a vida”, disse Doria em entrevista à ISTOÉ.

“A vida vem antes do lucro”

Desde que percebeu que a grave crise sanitária não ficaria restrita à China e à Europa, Doria cercou-se dos mais importantes infectologistas e passou a adotar medidas duras para impor o isolamento e providenciar a infraestrutura mínima voltada ao atendimento às milhares de vítimas da Covid-19. Ao contrário de Bolsonaro, determinou a construção de dois mil leitos de campanha e adaptou alas inteiras de hospitais públicos para os doentes, como fez no HC-SP. Por enquanto, o Estado vem dando conta de atender a elevada demanda: em São Paulo, concentram-se 70% dos casos do Brasil. O governador está destinando recursos vultosos para todas as prefeituras, pois, para ele, “a vida vem antes do lucro”. Em oposição a Bolsonaro, que chama a doença de “gripezinha”, Doria enfrentou a pandemia com firmeza desde o início, sempre alinhado ao ministro da Saúde que, ao contrário do chefe, tem tomado as medidas certas. “Se Bolsonaro demitir Mandetta, será um desastre para o Brasil”, diz.

Entrevista
João Doria, governador de SP

O presidente entrou em confronto com o senhor depois que os governadores decretaram medidas duras, como a quarentena, enquanto ele deseja que o País leve uma vida normal?
Ele contraria não só todos os líderes mundiais que pedem o isolamento social, mas contraria seu próprio ministro da Saúde, a ciência, a medicina, a maioria dos governadores e as pessoas conscienciosas. Será que só ele está certo? O mundo está errado e o único certo é o Jair Bolsonaro?

O fim do isolamento
será uma atitude criminosa e homicida (Crédito:Divulgação)

Ele chegou a lançar a campanha “O Brasil não pode parar”, mas o STF barrou. Medidas como essa confundem a sociedade?
Fragilizam o combate ao coronavírus. Não faz sentido que todos os líderes mundiais, sem exceção, indiquem a solução do isolamento social e preguem o ‘fique em casa’, enquanto Bolsonaro defende exatamente o contrário: saia de casa.

O presidente disse que pretende baixar um decreto determinando a volta ao trabalho de todas as profissões. Os governadores acatarão essa decisão?
Se ele fizer isso como apregoa, pelo menos 24 dos 27 governadores entrarão com medida judicial no Supremo para impedir. Essa será uma atitude criminosa e homicida. Pode ser classificada como homicídio. Estimular que as pessoas saiam do confinamento para irem às ruas e abrirem o comércio, é atentar contra a vida humana. O volume de óbitos pode chegar a números assustadores no Brasil. Se não houver a manutenção do isolamento social, o presidente pode ser responsabilizado criminalmente. Ele será um avalista da morte.

Ao visitar comerciantes na periferia de Brasília, estimulando-os a voltarem ao trabalho, o presidente desobedeceu ao seu ministro da Saúde. Como o senhor classificou essa postura?
Foi totalmente irresponsável. Desobedeceu orientações do seu próprio ministro e da Organização Mundial da Saúde. Ao tomar atitudes intempestivas, equivocadas e sem respeito à equipe técnica do Ministério da Saúde, que tem agido com muita cautela, ele praticou um ato de profunda irresponsabilidade.

O presidente alega estar recomendando que as pessoas voltem ao trabalho para a economia não quebrar. Ele diz que os defensores da quarentena podem ser responsabilizados pela recessão. O que acha disso?
Antes da questão econômica, nós temos que evitar mortes. A prioridade é proteger vidas. E, na sequência, vem a economia. Não podemos abandonar a defesa da vida para privilegiar o desempenho da economia.

Quando o presidente pede que todos levem vida normal, interrompendo o isolamento, qual é o prejuízo disso no combate à Covid-19?
Os danos são enormes. Declarações como as que ele faz diariamente geram dúvidas nas pessoas. O isolamento é uma necessidade. É melhor prevenir hoje do que lamentar amanhã. A vida vem antes do lucro. Por isso, eu reafirmo: fique em casa. Siga as instruções das autoridades da saúde. À medida em que o presidente adota essa ação irresponsável, ele atinge os mais incautos. Muitas pessoas não entendem que esse é um procedimento que pode ceifar a vida das pessoas. É um gesto de profunda irresponsabilidade.

O próprio ministro da Saúde teria perguntado ao presidente se ele estava preparado para ver caminhões do Exército carregando corpos pelas ruas, como aconteceu na Itália. Corremos o risco de repetir a Itália?
Esperamos que isso não aconteça. O importante é que a população confie no trabalho que os governadores têm feito, amparados nas decisões das autoridades sanitárias e nas medidas humanitárias adotadas em praticamente todos os estados brasileiros.

Em São Paulo, o senhor faz hospitais de campanha, mas não se vê o Exército fazendo o mesmo. Está faltando o presidente envolver as Forças Armadas nesta guerra?
Evidentemente que sim. Um verdadeiro líder já teria convocado o Exército a somar forças nos estados que estão mais vulneráveis, montando hospitais de campanha para salvar vidas e não ir às ruas convocar a população para voltar ao trabalho, expondo as pessoas ao risco e aumentando as chances de perderem suas vidas.

Como o senhor vê os gestos que o presidente tem adotado no sentido de desautorizar seu ministro da Saúde. O senhor acha que o ministro corre o risco de ser demitido em meio à crise?
Será um desastre para o Brasil a demissão do ministro Mandetta. Ele vem conduzindo de forma cuidadosa e zelosa o trabalho de combate ao coronavírus, sempre amparado na ciência e na medicina. Ele não tem feito achismo nessa área ou praticado o ativismo político, nem agido por impulsos. Ele está fundamentado em fatos e em dados científicos.

O senhor conversou com o prefeito de Milão, que também chegou a adotar a mesma postura de Bolsonaro no início, mas que depois voltou atrás. Qual a lição devemos tirar de Milão?
O prefeito Giuseppe Sala, com quem falei por telefone na terça-feira (31), explicou que ele não foi o autor da campanha ‘Milão não para’. Ele apenas endossou a ideia, que nasceu do mundo empresarial, talvez com a mesma ansiedade que alguns empresários aqui do Brasil, que também entendem que nós devemos relativizar o problema e voltar imediatamente à vida normal, o que não é recomendável por enquanto. O prefeito explicou que, em um primeiro momento, aceitou a campanha dos empresários, mas depois percebeu o desastre que isso proporcionava e voltou atrás. Em 30 dias, Milão e a região da Lombardia contabilizou 4.400 mortos e hoje a Lombardia já alcançou 6.000 mortos. Ele foi claro: preferiu rever sua posição e voltar atrás do que levar sua consciência ao limite da imprudência. As pessoas podem errar, mas devem ter a grandeza de reconhecer o erro e dar um passo atrás. Não se deve insistir no erro, como faz Bolsonaro. Sala deu provas de humildade.

À DISTÂNCIA Doria faz reuniões diárias por teleconferência com todo o seu secretariado (Crédito:Sérgio Andrade/governo do Estado de São Paulo)

Falta humildade ao presidente?
A humildade projeta líderes em momentos de crise e é o que tem faltado a Bolsonaro. Nós temos a maior crise de saúde da história e a maior crise econômica, mas o presidente mostra-se incapaz de liderar o Brasil, de enfrentar a crise de forma harmônica, com o entendimento construtivo com os governadores, somando a força dos prefeitos, agregando a sociedade civil, colocando a imprensa nesse cenário de uma maneira construtiva e não fazendo o que ele está praticando: agredindo governadores, prefeitos, a imprensa e os formadores de opinião pública. Enquanto o mundo faz ações positivas, ele toma medidas disruptivas e isolacionistas, onde apenas ele tem razão e o mundo todo está errado.

O senhor acredita que ele pode sofrer impeachment se continuar com essa postura?
Prefiro que essa pergunta seja feita ao Congresso Nacional, tanto aos senadores quanto aos deputados.
O que o senhor acha da solução Mourão? O vice-presidente seria mais capaz de liderar o Brasil?
Eu preferia uma solução Brasil. Não quero desqualificar o vice-presidente. O general Hamilton Mourão é uma pessoa de bem e com uma formação excelente. O que eu desejo é unir o Brasil, ter uma solução que permita a preservação da democracia, o respeito constitucional, a tomada de decisões acertadas e lideranças que sejam construtivas e pacificadoras do País. Pessoalmente, não tenho nenhuma restrição ao vice-presidente Mourão, mas defendo sempre aquela que for a melhor solução para ajudar o Brasil.

O ex-presidente Fernando Henrique reconheceu que o senhor tem feito um bom trabalho no combate ao coronavírus. Acha que isso abre as portas para o seu nome ser consenso como o candidato do PSDB à presidente em 2022?
Não é hora de falar em sucessão presidencial. É hora de tratarmos da saúde das pessoas, da recuperação econômica do País e de preservar vidas. Não é hora de tratarmos de campanha política.