Líderes do Centrão e de partidos de esquerda voltaram a dar as mãos, seguindo o nem sempre saudável princípio de que em política as coisas nunca são, as coisas sempre estão sendo. Dessa vez, o entendimento teve o objetivo de enterrar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que autoriza a prisão do réu e o início do cumprimento da pena logo após a condenação em segunda instância. A grande maioria dos parlamentares é contra essa proposta, e, convenhamos, não é difícil à leitora e ao leitor adivinharem a razão. Mas não nos custa, também, ser claros: muitos deles são investigados por corrupção e temem passar uma temporada na cadeia. Assim, na correria e em surdina, o bloco fisiológico do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e siglas como PT, PSB e PDT uniram-se para urdir um golpe no dia em que a Comissão Especial analisaria o projeto, que tem a relatoria de Fábio Trad (PSD-MS). Em 24 horas, lideranças atuaram nos bastidores e substituíram na comissão dezenove integrantes que votariam a favor da PEC por outros que são contrários a ela. A manobra não só empurrou a análise para fevereiro de 2022, como reduziu praticamente a zero a chance de seu avanço na Casa. “Eu fiquei muito frustrado, porque trabalhamos exaustivamente para aprová-la. Só pautamos porque tínhamos maioria”, disse Aliel Machado (PSB-PR), presidente da Comissão Especial, composta por trinta e quatro parlamentares. “O que aconteceu não é ilegal, mas e feio”. Na verdade, Machado foi suave demais: feio é colocar em público o dedo no nariz, o que ocorreu é totalmente antirrepublicano e antiético. Ao ver que os membros da comissão haviam sido trocados, Trad retirou o relatório.

O movimento que afundou a PEC foi orquestrado por Arthur Lira, um dos principais aliados do presidente Jair Bolsonaro. No início de dezembro, ele recebeu Machado em seu gabinete e foi avisado de que seria marcada a data de votação. Lira pediu-lhe mais tempo para que se buscasse um acordo com outras lideranças partidárias. Pouco tempo passou, e a composição de mais da metade do colegiado sofreu alteração — sem qualquer justificativa. “Antes da manobra, era garantido que a PEC seria aprovada. Agora muda a perspectiva. Minha esperança é de que haja mobilização popular”, afirmou Trad, sem atinar que em plena pandemia e surto de gripe, e em pleno sol de verão, ninguém está a fim de ir às ruas segurar faixa por segunda instância. Ele foi avisado da mudança repentina por um consultor da Câmara, na véspera da votação. Ao analisar as trocas, percebeu que estava sendo vítima de uma armação e que o mais sensato era retirar a proposta. Raciocínio fechado, projeto retirado: “ele não tem cunho personalista ou persecutório. É apenas um instrumento para fazer com que a Justiça brasileira não seja a única do mundo que, para se efetivar uma decisão, deva percorrer três instâncias”. O projeto aguardava análise desde 2019, ano em que o STF decidiu que condenados só cumprirão pena após trânsito em julgado (quando esgotados todos os recursos) e jogou a regulamentação no colo no Legislativo.

“Eu fiquei muito frustrado. Trocar membros da Comissão Especial não é ilegal, mas ficou feio” Aliel Machado, presidente da Comissão (Crédito:Jair Marques/ascom)

Acordos como esse, de partidos de esquerda com o Centrão, e vice-versa, não são raros. O PT sabe disso porque passeia bem no vaivém de laços rompidos, laços reatados. E não somente o PT. Na votação da PEC dos Precatórios, por exemplo, muitos parlamentares do PDT e PSB votaram de forma contrária à orientação partidária, seguindo bolsonaristas do Centrão, favoráveis à proposta. Em outubro, esquerda e Centrão também trabalharam juntos na votação de outra PEC: a que ameaçava o poder de investigação do Ministério Público. O PT e o grupo de Lira atuaram em conjunto, ainda, quando se aliaram para alterar a Lei da Ficha Limpa, impondo a necessidade de condenação em segundo grau para que um político seja impedido de disputar eleições. A Câmara dos Deputados é mais ou menos assim: os ideais e programas são tudo quando os riscos de prisão são nada. Não sem motivo, portanto, apenas 10% dos brasileiros, segundo o Datafolha, consideram bom ou ótimo o Congresso. Mas façamos importante ressalva: ainda que nenhum brasileiro goste dele, Câmara e Senado têm de funcionar porque é um Poder vital à democracia e não podem sofrer ameaças de cerceamento.

“Houve um desconforto por parte de alguns que se surpreenderam com a minha posição. Porque queriam votar para rejeitar o projeto. Agora, vamos tentar votar só em fevereiro de 2022”, disse o relator. A expectativa dele e de Machado era de que a votação acontecesse até o fim deste ano. Nenhum deles foi comunicado pelas lideranças de que fariam alterações na composição do colegiado. Nem pelas dos seus próprios partidos.

Contrário à proposta, o Centrão manobrou para alterar vários parlamentares da comissão. O deputado Pastor Gil (PL-MA), por exemplo, foi substituído por Júnior Mano (PL-CE). Lafayette de Andrada (Republicanos-MG) deu lugar a Gilberto Abramo (Republicanos-MG). Cacá Leão (PP-BA) e Fausto Pinato (PP-SP) também foram indicados a ocupar as vagas do partido no colegiado. Em um movimento casado com outras legendas, o PT indicou Paulo Teixeira (SP) para ocupar a cadeira de titular.

Antes suplente, o petista é contra à PEC. O PSB, de Machado, substituiu Mauro Nazif (RO) por Milton Coelho (PE) na suplência, assim como fez o PDT, que indicou Mário Heringer (PDT-MG). A estratégia para enterrar a PEC contou ainda com a participação de congressistas do PSDB, do DEM e do MDB. Questionado sobre a mudança ter contemplado congressistas do PSB, Machado afirmou que não acredita que a troca promovida pela legenda interferiria na aprovação da proposta.

Um dos maiores defensores da PEC, o pré-candidato Podemos à Presidência, criticou Sergio Moro, criticou a estratégia atribuída a “partidos da base do governo”. “Foi um movimento do partido da base do governo, incluindo o próprio partido do presidente, o PL. É muito ruim, porque esse tema é fundamental para reduzir a impunidade no combate à corrupção”, disse o ex-juiz da Lava Jato. Vários políticos que passaram pelas de Moro acabaram presos por terem tido condenações confirmadas em segunda instância. É o caso, por exemplo, do ex-presidente Lula, preso depois após decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4).