A população médica brasileira quadruplicou nos últimos 30 anos e se aproxima da quantidade recomendada pela OMS (Organização Mundial de Saúde). Ao mesmo tempo, o aumento reflete o fosso social e geográfico brasileiro, já que mais da metade dos profissionais atuam nas 27 capitais, enquanto os 5.543 municípios restantes dividem os médicos que sobram. O índice, em geral, é positivo, já que o Brasil tem o maior sistema público de saúde do mundo, o SUS (Sistema Único de Saúde), do qual dependem cerca de 190 milhões de habitantes.

Os dados constam do mais recente estudo Demografia Médica CFM (Conselho Federal de Medicina) 2024. Foram cruzadas informações das inscrições nos 27 Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) com recentes dados do Censo. Os números apontam que o País chegou ao final de 2023 com 575.930 médicos, o que corresponde à densidade de 2,81 profissionais a cada mil habitantes (recomendação da OMS é de 3,5). A divisão entre homens e mulheres ficou na régua – 49,91% delas e 50,09% deles.

O registro faz com que o País supere nações que são referência em cobertura médica populacional, como EUA (2,6 a cada mil habitantes), Japão (2,5) e Coréia do Sul (2,5). Se a curva de formação seguir ascendente, em pouco tempo o Brasil integrará o grupo de países com maior densidade de profissionais, onde estão Alemanha, Suécia, Portugal e Grécia, com média de 4 a cada mil. Além disso, em 2035 teremos mais de um milhão de médicos.

Não há segredo sobre o aumento explosivo de profissionais.
Até 1997, o Brasil contava com 85 escolas médicas.
Atualmente, é o segundo país com mais faculdades no mundo — são 386, sendo 121 públicas e 265 privadas — atrás apenas da Índia.
Isso trouxe a preocupação sobre criação indiscriminada de cursos sem que atendam critérios técnicos mínimos.

“Em 2014, o País disponibilizava 14 mil vagas ingressantes. Em 2024, já são cerca de 40 mil vagas. É preocupante porque não basta formar médicos; é preciso formar com boa qualidade”, diz Hideraldo Cabeça, 1º Secretário do CFM e supervisor da Demografia Médica 2024.

A obstetra Larissa Camargo viveu a transição na prática e compartilha a opinião: “Vieram as faculdades não ligadas a hospitais. A abertura desenfreada de cursos sem que os alunos tivessem campo de estudo adequado (centros médicos ligados) fez com que a qualidade de formação fosse um pouco perdida”.

Até 1997, o Brasil tinha 85 faculdades médicas. Atualmente, é o segundo país com mais cursos no mundo, atrás apenas da Índia, com 386 instituições de ensino de saúde

Densidade médica

Os números de crescimento são bons até a segunda página, quando é observado o recorte por região brasileira.

Duas das grandes regiões estão significativamente abaixo da média nacional: o Norte, com 1,65 médico a cada mil habitantes, e o Nordeste, com 2,09.
O Sudeste possui a maior densidade médica (3,62), seguido pelo Centro-Oeste (3,28) e pelo Sul (3,12).
São 19 os Estados com taxa de profissionais por habitantes abaixo da média nacional.
A maior densidade cabe ao Distrito Federal, que supera a marca de seis médicos por mil, seguido por Rio de Janeiro (4,19) e São Paulo (3,57).
Minas Gerais (3,30) e Espírito Santo (3) passaram à frente de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
A Paraíba é o Estado nordestino que lidera, com 2,89, e o Maranhão ocupa o último lugar, com 1,17.

O recorte que mais chama a atenção, porém, é da distância entre as capitais e as cidades do interior. Nos centros populacionais principais de cada Estado a densidade médica é de 7,03 – 55% dos médicos atendem 22,89% da população.

Já fora das 27 cidades principais, o número cai para 1,89 nos 5.543 municípios onde reside 77,11% da população.

Vitória, que tradicionalmente possui o maior contingente, tem índice de 18,14.

Completam o Top 5 Porto Alegre, Florianópolis, Belo Horizonte e Recife, todas com mais de oito profissionais por 1.000 habitantes.

Na outra ponta da tabela, estão Macapá (2,21) na lanterna, Boa Vista (2,68) e Manaus (2,77).

A obstetra Larissa Cassiano se preocupa com a qualidade de ensino dos formandos (Crédito:Divulgação )

O problema é antigo e a primeira iniciativa para ajuste de rota veio com o programa Mais Médicos, instituído em 2013 pela então presidente Dilma Rousseff. O objetivo era levar profissionais às regiões de escassez, mas em 2017 o plano foi descaracterizado, houve a polêmica com os profissionais cubanos e o mecanismo regulatório só voltou no ano passado.

“Até 2023, haviam 13 mil profissionais (no novo Mais Médicos). Ao retomarmos, fechamos o ano com 25 mil”, diz o Secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde, Felipe Proenço.“Sem contar que 60% dos que atendem os municípios mais vulneráveis são do programa, e estamos trabalhando na expansão.”

• Se pegarmos os menores municípios brasileiros, com população inferior a 20 mil habitantes, teremos 3.861 (70%) que somam 32 milhões de pessoas. Nesse conjunto, atendem apenas 16,7 mil médicos, ou 2,8% do total de profissionais do país.

• Na conta inversa, nas 41 cidades que possuem população superior a meio milhão, estão concentrados 61,5% dos médicos. Ampliando o esquadro para as 319 cidades que possuem mais de 100 mil moradores, teremos 85,5% dos profissionais do País.

“Em muitos lugares do interior a média não chega a um médico por mil habitantes, então a gente tem carência assustadora”, diz Paulo Chanan, presidente da Abrafi (Associação Brasileira das Mantenedoras das Faculdades).

Distribuição

Uma das soluções seria a melhor distribuição dos centros de ensino.
São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, por exemplo, somam 44% dos estudantes brasileiros, enquanto Amazonas, Amapá, Pará e Maranhão têm o menor número.
As capitais registram superconcentração, em indicativo da saturação de cursos nos grandes centros.
Vitória (ES), por exemplo, que é a capital com mais médicos por habitantes no País (18,14), é também a que possui mais estudantes — 6,85 por 1.000.

Esses dados são do Censo da Educação Superior de 2021 disponibilizado pelo INEP, que registrou 224.148 alunos matriculados do primeiro ao sexto ano de medicina. “No interior há uma carência grande de especialistas, pois falta estímulo, já que dificilmente haverá plano de carreira, possibilidade de ascensão profissional e espaço para crescimento”, opina Larissa Cassiano.

O secretário do CFM acrescenta que os formados preferirão atuar no segmento privado e nos planos de saúde, pela melhor oferta de salários e condições de trabalho do que na rede pública. “Os que permanecem no Norte e Nordeste e nos municípios mais pobres do interior se ressentem da falta de investimentos em saúde e da ausência de perspectivas.”

Diante dos números de formação médica dos últimos anos, a projeção é que o Brasil superará o milhão de médicos em 2035.

Há dois cenários com maior possibilidade de acontecerem.
• No primeiro, o País conservará o atual número de centros de formação e de vagas dos últimos cinco anos. Diante desse quadro, o Brasil teria daqui a 11 anos o total de 1.04 milhão de profissionais, ou o correspondente a 4,81 médicos a cada mil brasileiros.
• Outra possibilidade é que o MEC dê aval às 335 ações judiciais que pediam abertura de novos cursos e às 35 propostas de aumento de vagas nas instituições em operação. Sob essa perspectiva, o País chegará a 2035 com 1,36 milhão de profissionais da saúde e proporção de 6,30 médicos por mil brasileiros.

“Deveriam autorizar cursos de medicina em locais que têm hospitais, residência médica, professores e salários compatíveis, e exigir das instituições que façam a contrapartida do SUS no interior, para que comece a desenvolver condições em outros lugares e popule regiões necessitadas”, diz o presidente da Abrafi.