No centro do furacão da investigação sobre a ‘Abin paralela’ montada no governo Jair Bolsonaro, dois servidores do alto escalão da Agência Brasileira de Inteligência – entre eles o número 3 na hierarquia do órgão – reconheceram como o ‘produto final’ da agência chegava a ser alterado para não contrariar as narrativas políticas do ex-chefe do Executivo.

Os servidores fizeram ponderações sobre como o corpo funcional da Abin classificou a gestão do ex-diretor Alexandre Ramagem (hoje deputado federal) descrevendo a pressão para que as conclusões da agência estivessem alinhadas com as pretensões de Bolsonaro.

As ponderações constam de um ‘resumo da administração de Ramagem na Abin’, relatório que teria sido trocado entre dois outros investigados da Operação Vigilância Aproximada – o diretor do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Segurança das Comunicações da Abin, Paulo Magno; e o secretário de Planejamento da agência, Paulo Maurício Fortunato.

Segundo o documento, os servidores da Abin mantinham uma expectativa, no início do governo Bolsonaro, de que a proximidade de Ramagem, então chefe da agência, com o então presidente fortaleceria a atividade de inteligência de Estado.

No entanto, a expectativa foi frustrada ao se perceber uma ‘agenda política pessoal’ de Ramagem. Foi identificado ‘direcionamento dos recursos para atender demandas de interesse privado ou ideologicamente enviesadas, em desacordo com as diretrizes institucionais’.

A conduta gerou ‘resistência’, segundo resumiram Paulo Magno e Paulo Fortunato. De acordo com o relato, quem se opôs às demandas gradativamente foi exonerado da função. Alguns sofreram perseguições e a carreira ficou prejudicada.

Magno e Fortunato destacam que ‘para contornar a resistência, a direção–geral da Abin buscou afastar servidores mais experientes e nomeou diversos servidores mais novos, muitos ainda em estágio probatório, para funções importantes’.

As anotações sobre o clima belicoso na Abin sob gestão de Ramagem e a necessidade de atender demandas políticas do governo constam da decisão que autorizou as diligências da Polícia Federal na mais recente fase da Operação Vigilância Aproximada, nesta segunda, 29.

A ofensiva mirou o ‘núcleo político’ de suposta organização criminosa incrustrada na Abin à época. O alvo principal é o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), vereador no Rio e filho ’02’ de Bolsonaro.

Segundo o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, o ‘resumo da administração de Ramagem’ é um indício que leva a investigação a ‘demonstrar a plena ciência da realização das condutas ilícitas’ do ex-chefe da Abin.

O deputado foi alvo de uma etapa da Operação Vigilância Aproximada no último dia 25, sob suspeita de ter ‘incentivado’ a Abin paralela. A PF pediu seu afastamento do mandato na Câmara, mas a Procuradoria-Geral da República se manifestou contra a medida. Moraes acolheu o parecer da PGR e manteve Ramagem no cargo.

Paulo Magno e Paulo Fortunato não são largamente citados na decisão que abriu a nova fase da Operação Vigilância Aproximada, mas seus nomes constam do despacho que autorizou as diligências que espreitam Ramagem. Eles são mencionados quando a PF descreve o núcleo da alta-gestão da Abin’.

Segundo os investigadores, o grupo ‘detinha o poder de direcionamento das condutas dos demais, com pleno conhecimento do desvirtuamento do uso da ferramenta de inteligência First Mile e teria tentado dar uma aparência de legalidade na sua utilização, bem como impedir a apuração correicional sobre condutas ilícitas’.

A PF narra que os dois gestores tinham domínio da ferramenta de inteligência e ‘sabiam da existência de alvos sensíveis’. À época, Paulo Fortunato era Diretor de Operações de Inteligência da Abin e exercia, segundo a PF, ‘ascendência funcional sobre os servidores investigados’. Paulo Magno era gestor do First Mile e teria sido flagrado pilotando um drone nas proximidades da residência do então governador do Ceará Camilo Santana, hoje ministro da Educação.

Os investigadores identificaram um contato de Paulo Magno e Paulo Fortunato que indicariam como as supostas ações de inteligência ‘foram realizadas sob a gestão e responsabilidade de Ramagem’.

O diálogo que chamou a atenção dos investigadores trata do ataque às urnas eletrônicas, como mostrou o Estadão.

De acordo com a PF, o grupo de policiais federais cedidos à Abin na gestão Ramagem, fez uso ‘das ferramentas da agência para (execução) serviços e contrainteligência ilícitos e para interferir em diversas investigações da Polícia Federal’.

A PF suspeita que o grupo tentou produzir provas a favor de Jair Renan, filho ’04’ do ex-presidente, no inquérito que apura suposto recebimento de um carro para beneficiar empresários do ramo de exploração minerária.