Em luto ainda pela morte de Jorge Mario Bergoglio, o Francisco, o Vaticano já começa a se preparar para a escolha do novo papa e para a definição do futuro da Igreja Católica. Antes mesmo do conclave, a Santa Fé se vê pressionada a manter o legado deixado pelo argentino, em meio a um cenário que contrasta com as tendências políticas globais e o perfil do colégio de cardeais que depositarão seus votos na escolha do novo chefe da Igreja.
Os feitos de Francisco marcaram profundamente a Igreja Católica, e os 135 cardeais eleitores deverão considerar essas transformações ao escolher seu sucessor. Contudo, o legado do antigo pontífice não garante que o catolicismo seguirá o mesmo rumo.
Para especialistas, o conclave deste ano deve ser a maior incógnita do Vaticano no último século. As disputas internas e as insatisfações de grupos conservadores devem moldar os rumos para o novo papado.
Em entrevista à IstoÉ, a professora de antropologia da religião da Unicamp, Brenda Carranza, explicou que o conclave deste ano poderá ser dividido em quatro grupos:
- Administração Vaticana – Aqueles que já trabalhavam com o papa Francisco e que possuem cargos na alta cúpula da Igreja;
- Conservadores e Ultraconservadores;
- Os moderados – Aqueles que têm viés conservador, mas com aderem às pautas progressistas
- Aliados de Francisco – Progressistas
Das quatro cúpulas, os conservadores e os ultraconservadores são os que mais acendem o alerta nos corredores da Capela Sistina, local da votação. Mesmo com o aumento do progressismo católico, o grupo, que defende as tradições da Igreja Católica, ainda é maioria no colégio de cardeais e tem como trunfo o apoio da massa do baixo clero.
“Esses cardeais estão apegados a uma tradição tridentina, do século XVI, onde se tem que voltar a missas em latim, a fazer ênfase na liturgia, a trabalhar mais o sagrado e aqueles signos externos na igreja profundamente piramidal, patriarcal, machista e clericalista”, explica a professora.
“Esse grupo é um grupo forte que fez oposição [a Francisco], tem um espaço muito grande na mídia e o mais importante, eles têm suporte nas bases religiosas do catolicismo”, concluiu.
Logo após a morte de Francisco, as bancas de apostas começaram a colocar ao menos seis cardeais como favoritos. Entre eles está Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, dono de um perfil mais moderado e considerado favorito ao papado.
Já Matteo Zuppi, arcebispo de Bolonha, tem um perfil mais alinhado a Francisco, progressista e que apoia pautas caras ao antigo pontífice. Do outro lado está Péter Erdő, arcebispo de Budapeste, considerado ultraconservador e espelho de Bento XVI.
Para Brenda, a discussão em torno do novo papa deve ser focada no projeto de Igreja para evitar o enfraquecimento do catolicismo mundial. Ela reforça, no entanto, que a disputa pela vaga está dentro do conservadorismo.
“Para mim, o mais importante é ver qual é o projeto de Igreja que estes grupos vão chegar a um consenso”, declarou.
“Eu não acho que neste momento histórico da Igreja a discussão esteja entre conservadores e progressistas. Para mim a discussão está entre conservadores moderados e ultraconservadores”.
Indicações não são garantia de voto
Dos 135 cardeais eleitores no conclave deste ano, Francisco nomeou 108, cerca de 80% do total votante. Na teoria, o ex-pontífice teria vasta maioria para manter alguém com o mesmo perfil, mas, na prática, o cenário é outro.
“O grande desafio agora é eleger um sucessor que dê continuidade a esse legado. Francisco pode ter deixado indicações, mas não há garantias de que serão seguidas. O colegiado está dividido: há progressistas e conservadores. Francisco nomeou 133 cardeais, mas muitos são conservadores – ele foi transparente até nisso”, afirma Lídice Meyer, doutora em Antropologia e professora da Universidade Lusófona, em Portugal.
A tese também é defendida por Brenda Carranza, que ressalta o vasto número de cardeais advindos da escola de Bento XVI, e poucos de João Paulo II.

Francisco deixou legado ao abrir espaço para mulheres na Igreja e no avanço de diálogo com o público LGBTQIAPN+ e refugiados – AFP
“Desses 135, 108 foram nomeados por Francisco. Só que aí tem uma armadilha: pensar que 108 sejam nomeados por Francisco não significa fidelidade ao seu legado ou afinidade ideológica”, afirma.
“Isso significa que houve uma renovação no colégio cardinalício e que esta formação de alinhamento se dá em outra esfera. Os quadros formados durante 2016 e João Paulo II são altamente conservadores e profundamente alinhados e são sinônimo de fidelidade aos projetos destes papas”, completa a professora da Unicamp.
Legado de Francisco impacta
Uma das principais ponderações do conclave será definir quais os rumos da Igreja Católica nos próximos anos. Com Francisco, o Vaticano se tornou mais digital, se aproximou de jovens e viu os números de fiéis crescerem, principalmente na Ásia.
O ex-pontífice ainda manteve um forte diálogo com o público inter-religioso, aproximando públicos que antes não se identificavam com o catolicismo.
“A Igreja cresceu muito com Francisco. Duas Jornadas Mundiais da Juventude mostraram como ele trouxe jovens e afastados de volta. Até evangélicos se aproximaram do catolicismo com Francisco – algo impensável no tempo de Bento XVI”, explica Lidice Meyer.
Para fortalecer a igreja, Bergoglio usou a estratégia da internet para se aproximar da linguagem dos jovens, mudou o formato das missas e, de quebra, passou a dialogar com o público LGBTQIAPN+ e dos refugiados. Na avaliação de Lidice, um retrocesso nesse caminho poderá ser desastroso para a Igreja.
“Um papa conservador seria desastroso. Bento XVI era brilhante teologicamente, mas não sabia falar ao povo. Francisco usa até Twitter. Se vier um conservador, a Igreja pode perder fiéis na Ásia, onde mais cresce. Por isso acho mais provável um moderado”, opina.
Francisco ainda foi o responsável por dar, pela primeira vez, transparência às contas da Igreja após a crise no Banco do Vaticano em 2012. Na época, a instituição foi acusada de abrigar contas alvo de investigações de lavagem de dinheiro, além de apresentar um déficit de € 15 milhões.
Outro legado deixado pelo pontífice é a transparência e as ações em casos de abusos sexuais envolvendo padres, um dos maiores calos da Igreja Católica nas últimas décadas. Por fim, o Santo Padre abriu espaços para mulheres em cargos no Vaticano.
Para Brenda Carranza será difícil uma mudança drástica nas ações deixadas por Francisco seja qual for o resultado do conclave. Mas ressalta que a quebra de paradigmas na igreja devem ter embasamento jurídico para continuarem.
“Se isso entrou, estes quatro grandes dispositivos internos entraram de cheio na igreja e foram juridicamente chancelados, dificilmente um futuro papa, por muito ultraconservador que seja, poderá retirar”, afirma.
“A permanência destas mudanças significativas, destes gestos de Francisco, vai depender de quão firme isso está segurado juridicamente na estrutura da Igreja”.
Caso a tendência da entrada de um conservador se confirme, Lidice Meyer acredita que deve haver retrocesso no debate sobre imigrantes, controle de conflitos de guerra e, principalmente, debate sobre a participação de LGBTQIAPN+ na Igreja e no acolhimento de refugiados.
“Algumas conquistas de Francisco são irreversíveis, como a abertura da Igreja para as mulheres. Mas outras podem regredir: diálogo com LGBT, divórcio, diaconato. O diálogo inter-religioso de Francisco foi revolucionário. Um conservador pode acabar com essa abertura ecumênica”, avalia a professora da Universidade Lusófona.