A eleição da direção do Congresso nesta quarta-feira, dia 1º, marca o início, na prática, do governo Lula. A definição dos líderes do novo Parlamento delimita o poder e as dificuldades que Lula terá para dirigir o País. Tudo indica que o petista conseguirá um acordo mínimo de governabilidade na Câmara e no Senado, já que sua gestão negociou com os principais candidatos e fará parte da mesa das duas Casas.

Baixada a poeira, o Legislativo precisa reagir contra a ameaça golpista. Os ataques de 8 de janeiro precisam de uma resposta firme, e a aprovação de uma CPI do Golpe no Senado, como propôs a senadora Soraya Thronicke, é a primeira e principal providência para desbaratar a rede de financiamento e articulação da ação antidemocrática. Além de dar nome aos bois, a CPI estabelecerá o enredo do crime, como fez com sucesso a CPI da Covid, que descobriu falcatruas em progresso e indiciou Bolsonaro por nove crimes. Infelizmente, Lula e seus líderes, inclusive Randolfe Rodrigues e Fabiano Contarato, trabalham para enterrar a nova comissão.

O argumento é que uma CPI poderia “criar muita confusão”. Ou seja, tirar os holofotes do governo, que procura – sem sucesso, por enquanto – criar uma agenda positiva para os seus primeiros cem dias. Todas as atenções estariam voltadas para a CPI e os criminosos que agiram na estrutura oficial ou paralela do governo Bolsonaro. Vários, aliás, conseguiram assento e imunidade no Congresso.

Outro temor de Lula é reacender o debate sobre a criminalização dos militares. Apesar de o Exército não ter apoiado o golpe (ao contrário, deixou Bolsonaro na mão), vários oficiais, de uniforme ou pijama, agiram escancaradamente para acabar com a democracia. Um corolário dessa criminalização seria a revisão da lei da Anistia, que encerrou a ditadura de 64. Reabrir essa ferida aumentaria a incerteza sobre o futuro e daria munição para os bolsonaristas politizarem de vez a caserna.

Mas enterrar a CPI seria um erro. Varrer a tentativa de putsch para debaixo do tapete não pacifica o País nem elimina o extremismo, que ainda cresce (a brilhante pesquisadora Adriana Dias, recém-falecida, identificou mais de 300 células neonazistas no Brasil). A operação-abafa pode até ser conveniente para manter vivo o fantasma de Bolsonaro, o que alimenta a polarização e estabelece o PT como fiador da democracia. Mas dificulta o amadurecimento das instituições, que se mostraram fortes no último pleito, mas não são infalíveis.

Ao invés da CPI no Parlamento, o governo Lula, por meio do ministro da Justiça, Flávio Dino, propõe uma Medida Provisória para multar as big techs pelas fake news nas redes e uma nova lei para punir o financiamento de atos antidemocráticos. Além disso, quer criar uma “Guarda Nacional” permanente em Brasiília para proteger o coração do poder.

São medidas paliativas e pouco eficientes. O senador Alessandro Vieira, por exemplo, já apresentou um projeto para federalizar a segurança do Distrito Federal. Já há uma estrutura local que recebe recursos federais para isso, sem contar os batalhões do Planalto que não reagiram no quebra-quebra recente. Não faltaram tropas para defender Brasília em janeiro. Faltou comando. A CPI, aliás, seria o melhor fórum para apurar a cadeia de eventos criminosos que levou à invasão.  As ferramentas para punir a desinformação nas redes não podem ser instituídas por canetada. Para isso, há um projeto sob relatoria do deputado Orlando Silva em discussão há três anos na Câmara. Esse é o melhor lugar para esse debate ser travado.

Por último, o controle sobre as ações golpistas não é tarefa de um governo. Deve ser enfrentada por instrumentos de Estado. E o que não funciona precisa ser escrutinado na CPI. A lei antiterrorismo, por exemplo, na sua formulação atual, é inútil para enfrentar ameaças de golpe ou atentados políticos evidentes. Ela pune apenas xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia ou religião. Ela não criminaliza quem depreda a sede dos Três Poderes, planta bombas no aeroporto de Brasília, invade a sede da PF, derruba torres de transmissão de energia, bloqueia rodovias ou paralisa refinarias. Os bolsonaristas fizeram tudo isso nos últimos dois meses, mas não são terroristas, segundo a lei.

A norma havia sido cuidadosamente desidratada pelo PT para proteger os “movimentos sociais”. O partido pretendia proteger o MST e outros grupos, mas com isso permitiu que os núcleos terroristas bolsonaristas ficassem protegidos. Essa eventual criminalização foi vetada por Dilma Rousseff, que contou para isso com seu então braço-direito “Bessias”, o atual Advogado-Geral da União, Jorge Messias. Ele agora quis reagir. Propôs criar uma Procuradoria para combater as fake news, mas voltou atrás com a péssima repercussão da iniciativa. Negou que a AGU queira virar fiscal das redes sociais.

Esse é o maior risco de projetos malformulados: criar aparatos de censura a serviço do governante de plantão. É apenas com o debate franco e transparente, sob o escrutínio da Justiça, que a sociedade pode aprimorar suas ferramentas de proteção. O cerco à desinformação, com leis mais rigorosas, deve ser discutido abertamente no Congresso à luz da experiência internacional. E os autores do atentado de 8 de Janeiro, dos pés-rapados aos mentores, precisam ser nomeados diante das câmeras. Não se trata de mediar a força entre o PT e o bolsonarismo. Com a CPI, o País tem a chance de pavimentar o seu futuro.