58ª BIENAL DE VENEZA – MAY YOU LIVE IN INTERESTING TIMES/ até 24/11/ Giardini e Arsenale, Veneza

Muros materializam pensamentos radicais que dividem o mundo hoje. Pelo menos três trabalhos expostos na 58ª Bienal de Veneza, que abriu no sábado 11, representam ou discutem as barreiras físicas que estigmatizam as pessoas em classes e categorias. A mexicana Teresa Margolles reconstrói um fragmento de 12 metros de um muro da fronteiriça Ciudad Juárez, no México, com tijolos de concreto retirados do local. A indiana Shilpa Gupta instalou um portão residencial mecânico que, com a força do impacto, destrói as paredes sobre as quais está articulado. E a palestina Rula Halawani fotografa o muro e os portões — sempre fechados — que controlam os acessos entre Israel e as terras palestinas ocupadas. Essas são representações tangíveis das divisões sociais e políticas de nosso tempo. Mas há formas de remeter-se a elas simbólica ou metaforicamente.

É o que faz o cinema contemporâneo apresentado em Veneza. Ao se desdobrar em videoinstalações em dois ou mais canais, e em experiências espaço-temporais, simultaneamente reais e virtuais, esses filmes respondem à polarização e extremismo do nosso tempo.

Ralph Rugoff, diretor artístico da 58º Bienal, sugere que as divisões do mundo se refletem também na forma como ele organizou a curadoria “May You Live in Interesting Times”, já que os 79 artistas convidados expõem simultaneamente nas duas sedes da Bienal: o Arsenale e o Pavilhão Central do Giardini. “Visitantes que frequentemente não se incomodam em ler textos introdutórios ou etiquetas de parede nem imaginam que essas duas exposições foram feitas pelos mesmos artistas”, escreve Rugoff no texto curatorial. “Os trabalhos apresentados nesses dois edifícios, e atmosfera que eles provocam, são muito diferentes um do outro”.

Essa duplicidade — ou multiplicidade — implícita na produção dos artistas selecionados, segundo o curador, vem a ser uma forma de representar a relatividade das certezas e das convicções na era da informação digital. Em outras palavras, na era da pós-verdade e da polarização do pensamento contemporâneo em extremidades. O pensamento e os valores contraditórios incutidos à sociedade pelo poder autoritário, presentes na paisagem distópica construída por George Orwell no romance “1984”, é uma das referências assumidas pela curadoria.

Conceito central da Bienal, a duplicidade é também um forte dispositivo narrativo do audiovisual contemporâneo apresentado na curadoria principal e em boa parte dos 90 pavilhões de representações nacionais espalhados pelos Giardini e pela cidade. No pavilhão da Dinamarca, “Heirloom” (2019), instalação da dinamarquesa-palestina Larissa Sansour, é composta por um filme de ficção científica em dois canais, uma escultura instalativa e uma intervenção arquitetônica. O combo faz com que o espectador do filme In Vitro (2019) — que se passa na cidade de Jerusalém, décadas depois de um desastre ecológico — ao sair da sala escura, se sinta adentrando fisicamente no mesmo filme, num mecanismo de sobreposição das esferas real e virtual.

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Também em dois canais, “Doppelgänger” (2019), do canadense Stan Douglas, exposto no Pavilhão central do Guardini, conta a história de uma personagem que vive simultaneamente em duas dimensões. O filme parte de uma pesquisa cientifica do artista sobre o conceito de “entrelaçamento” da física quântica, em que duas partículas estão tão próximas que podem partilhar da mesma existência. No contexto de uma mostra que se propõe a encarar o fenômeno das fake news, o jogo de espelhos e distorções proposto no filme de Douglas pode ser lido como uma metáfora de uma paisagem social polarizada, em que crenças contraditórias operam simultaneamente para explicar os fatos.

A representação oficial do Brasil na Biennale 2019 também é audiovisual. Em “Swinguerra” (2019), a dupla Bárbara Wagner e Benjamin de Burca desafia o conservadorismo que hoje pauta a “oficialidade” no Brasil, com um trabalho comovente e corajoso que tensiona noções de raça, gênero e identidade, e é um dos grandes pontos de atração de público nos Giardini. O filme foi comissionado por Gabriel Pérez-Barreiro, curador da 33ª Bienal de São Paulo, e apresenta uma espécie de musical à “West Side Story”, encenado por jovens dançarinos de swingueira, brega funk e passinho da maloca, na periferia do Recife. Muitos deles, negros e transexuais, contam uma história invisível aos circuitos do poder — a sua própria história. “Este é um trabalho com e não sobre a comunidade swingueira. Esse é o aspecto mais politico do trabalho”, diz Pérez-Barreiro à ISTOÉ. Sua exposição no pavilhão brasileiro é um “statement” político muito importante, no momento em que anúncios que representam nossa juventude são tirados do ar, e o país está mergulhado em tensão política e social.


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