Redes sociais se tornaram espinha dorsal do setor de comércio e serviços no Brasil. Mas concentração do ambiente digital e ações judiciais levantam questionamentos sobre potenciais impactos nessa forma de fazer negócios.Há cerca de dez anos, quando diferentes decisões judiciais tiraram o WhatsApp do ar no Brasil por alguns dias, o aplicativo começava a trajetória para se tornar um serviço essencial na rotina do país, incluindo nos negócios. Atualmente, a plataforma, assim como algumas outras como Google e Facebook, é parte da estrutura econômica nacional, em um cenário no qual o comércio digital vem crescendo seguidamente.
Desta maneira, eventuais ações de regulação das redes, que vêm sendo discutidas pelo governo, se tornam também um tema que pode afetar a atividade no país.
Uma pesquisa realizada pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) mostrou que 67% das empresas do setor de comércio e serviços do país utilizam o WhatsApp como principal canal de venda. A dependência destas plataformas vem sendo constantemente ampliada, algo reforçado com o lançamento do TikTok Shop no país no começo de maio.
O estudo anual Beyond Borders do serviço de pagamentos Ebanx apontou que o volume do comércio eletrônico no Brasil passou de US$ 277 bilhões (R$ 1,579 trilhão) em 2023 para US$ 346 bilhões (R$ 1,972 trilhão) em 2024, com uma estimativa de que este valor alcance os US$ 419 bilhões (R$ 2,388 trilhão) neste ano.
A liderança fica com o varejo, responsável por uma parcela de 40% do volume movimentado, seguido pelos serviços digitais, com 31%. O principal fator para a alta é a inclusão financeira promovida pela digitalização dos pagamentos no Brasil, aponta Eduardo de Abreu, vice-presidente de produto do Ebanx.
"Antigamente, somente quem tinha cartão de crédito conseguia fazer compras online. Esse acesso foi ampliado com novos métodos. O Pix que já é usado por mais de 90% da população adulta brasileira vai ultrapassar os cartões e se tornar o meio de pagamento mais utilizado no comércio digital ainda neste ano", explica, citando as projeções da empresa.
"O Brasil está na vanguarda dos pagamentos digitais e tem servido de modelo para países do mundo todo", aponta. Como resultado, em 2024, o país foi responsável por 55% do volume de vendas digitais na América Latina. Com uma população cerca de sete vezes maior, a Índia contou com valores bem abaixo dos brasileiros no último ano, com um montante de US$ 182 bilhões.
Concentração das Big Techs
Os grandes volumes chamam a atenção das principais empresas de tecnologia. "O comércio digital nos mercados emergentes tem atraído novos players globais. O Brasil oferece uma oportunidade importante para esses negócios", aponta Abreu, que cita que o mercado digital é diversificado e visto por grandes players como uma grande oportunidade de expansão internacional.
"O ambiente digital vem tendendo a uma concentração cada vez maior", afirma Lucas Marcon, advogado do programa de telecomunicações e direitos digitais do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec). Ele lembra que, a exemplo do caso do TikTok, no qual usuários agora terão acesso a um comércio online a partir do seu consumo primário de vídeos, as grandes empresas de tecnologia vêm buscando oferecer o máximo de serviços aos clientes.
Neste sentido, ele acredita que o desenvolvimento de inteligências artificiais próprias por estas empresas, algo que foi tendência nos últimos anos, tende a acentuar ainda mais a vantagem que os grandes players do mercado possuem no segmento do comércio. "As tecnologias usadas normalmente são as já estabelecidas", aponta.
Um elemento central é a publicidade, principal fonte de receitas de plataformas como Facebook e Google. "Essas plataformas possuem grande capacidade de coletar dados, transformar em um perfil dos consumidores e personalizar anúncios", resume.
O movimento foi refletido na pesquisa da CNDL, com 41% dos empresários afirmando que investem em divulgação para suas vendas. Os canais mais citados foram os anúncios pagos nas redes sociais – Instagram e Facebook (21%), panfletagem (13%), Google (11%), marketplaces (4%), contratação de agência ou freelancer para elaboração de posts para as redes sociais (4%) e o email-marketing (4%).
Impactos da regulação
O passado das decisões sobre o WhatsApp e os imbróglios envolvendo a suspensão a rede X (antigo Twitter) no Brasil levantam questões sobre como essas disputas podem impactar os negócios que dependem destas plataformas. Discussões recentes sobre responsabilidade por conteúdos, incluindo o julgamento sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet no Supremo Tribunal Federal (STF), jogam luz sobre as eventuais punições para as empresas que não cumpram com as normas no país.
Marcon, do Idec, destaca a tramitação de um projeto de lei (PL) sobre proteção aos menores no ambiente digital. Segundo ele, a proposta, que veda o direcionamento de anúncios para crianças e adolescentes, tende a avançar, equiparando o que vale atualmente para mídias tradicionais ao digital. Além disso, o especialista avalia que as propostas em circulação sobre inteligência artificial podem afetar a coleta de dados pelas plataformas no país.
Em 2023, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva buscou impulsionar no Congresso medidas sobre a responsabilização das plataformas em relação à desinformação, no que ficou conhecido como "PL das fake news". A medida contou com apoio legislativo e popular limitado, e Marcon crê que já está "enterrada". Na sua visão, houve um grande lobby das plataformas contra o projeto inicial, que frequentemente o pintaram com uma suposta tentativa de censura.
No aspecto da concorrência, o Ministério da Fazenda apresentou no ano passado o relatório Plataformas Digitais: aspectos econômicos e concorrenciais e recomendações para aprimoramentos regulatórios no Brasil. À época, o organismo alertou que a dinâmica de poder econômico ligado às grandes plataformas configura uma nova estrutura de poder de mercado, sobre a qual os tradicionais instrumentos de análise antitruste não são mais plenamente eficazes.
Há riscos para o serviço?
Em maio, a Meta ameaçou deixar a Nigéria em razão de multas que a empresa sofreu no país por conta de uma política de dados de usuários implementada no WhatsApp em 2021. A empresa foi condenada a pagar US$ 290 milhões, mas rechaçou a multa, colocando milhões de usuários em dúvida sobre a continuidade dos serviços, que incluem ainda Facebook e Instagram.
Em 2024, a Justiça brasileira concedeu uma liminar contra o Whatsapp em resposta a uma ação do Idec junto ao Ministério Público Federal (MPF). A decisão estipulou que aplicativo cumpra com obrigações sobre dados de usuários enquanto a decisão definitiva não for tomada, sob pena de multa de 200 mil reais ao dia. O caso envolve a maior ação judicial sobre proteção de dados pessoais do país, com um pedido de indenização que pode chegar a R$ 1,7 bilhão.
Em setembro do ano passado, a liminar foi suspensa. E, em março deste ano, o recurso da empresa foi julgado em favor do Whatsapp. No momento, o processo prossegue na primeira instância. "O que aconteceu na Nigéria é muito parecido com nossa ação aqui no Brasil. As exigências dificultam a atuação da empresa", afirma Marcon.
No entanto, Marcon não crê que o desdobramento deva ser o mesmo do caso nigeriano. "Não acredito na possibilidade de saírem. Sabemos da importância do Whatsapp, que tem basicamente um interesse público no Brasil", aponta. Ele também lembra que as multas previstas no país neste caso são mais baixas, atingindo no máximo os R$ 50 milhões, o que é pouco em comparação com o faturamento brasileiro da Meta.
Sobre novas decisões judiciais desfavoráveis, como as da década passada sobre o aplicativo, o especialista também é cético. "Hoje, mudou o entendimento da função da empresa, que passou a ser vista como um serviço", conclui.
Já o caso do TikTok, que vem sendo constantemente pressionado pela responsabilidade por conteúdos promovidos a menores, pode vir a ser alvo de "tensão”, acredita Marcon. Em um caso semelhante em 2024, a plataforma foi banida por um ano na Albânia, até se adequar às regras do país. A suspensão foi motivada pelo assassinato de um adolescente de 14 anos, que ocorreu na esteira de uma disputa que havia se originado em vídeos na plataforma.