Há séculos o cristianismo discute a existência e a relevância histórica dos Evangelhos Apócrifos, fascinante conjunto de textos religiosos que desafia a compreensão e interpretação de teólogos e pesquisadores em todo o mundo. Muitas vezes esquecidas ou deliberadamente excluídas pela Igreja Católica, essas escrituras reúnem uma narrativa paralela e secreta, cujo teor diverge de inúmeros dogmas cristãos. Uma nova versão organizada pelo historiador português Frederico Lourenço promete lançar luzes sobre o tema.

Em uma bela edição trilíngue (grego, latim e português), a obra apresenta uma jornada fascinante cujo mérito, entre outros, é questionar por que esses textos seguem à margem do cânone cristão.

Enquanto os quatro livros oficiais (Mateus, Marcos, Lucas e João) são aceitos pelo Vaticano, os evangelhos escritos por Tiago, Tomé e Maria Madalena, entre outros, são mantidos sob um véu de mistério. Abordam a vida e os ensinamentos de Jesus Cristo, mas apresentam nuances e detalhes que fogem das narrativas tradicionais.

Há, por exemplo, diálogos com figuras místicas e jornadas espirituais transcendentais. O jovem filho de Maria enfrenta dragões e feiticeiros, histórias mais próximas da mitologia que do catolicismo.

A decisão sobre quais autores bíblicos seriam reconhecidos como autênticos e quais seriam relegados à obscuridade foi tomada no decorrer dos séculos, por concílios, bispos e papas.

A seleção teria sido pautada por critérios históricos, mas também por inconsistência teológica e falta de conexão com outras tradições. Muitas dessas escolhas obedeceram a um caráter essencialmente político, uma vez que a Igreja sempre precisou se posicionar para manter seus interesses e a solidez de sua narrativa ao longo dos séculos.

Entre as justificativas, alega que os textos bíblicos são inspirados pelo Espírito Santo, enquanto os Evangelhos Apócrifos não possuem tal credibilidade. No entanto, o fato de eles existirem nas sombras e voltarem a ser discutidos tanto tempo depois revela como ainda despertam o interesse acadêmico e popular.

A natureza dos evangelhos apócrifos gera controvérsia. Alguns deles apresentam visões conflitantes com os ensinamentos da Igreja Católica. Isso pode ser atribuído à multiplicidade de correntes que floresceram nos primeiros séculos após a morte de Jesus, cada uma com suas próprias interpretações sobre a mensagem de seu líder.

Como resultado, a Igreja optou por restringir a inclusão de certas ideias para evitar a disseminação de doutrinas consideradas heterodoxas ou potencialmente confusas para os fiéis.

Entre as críticas mais comuns, citam que, nesses textos, as citações de Jesus teriam sido feitas em contexto privado, ou seja, diante apenas dos apóstolos e de Maria Madalena — e isso teria maculado a sua origem.

Há, no entanto, trechos que buscam dar respostas legítimas a dúvidas dos fiéis, principalmente em relação a períodos pouco abordados pela Bíblia. A infância e a adolescência de Jesus, por exemplo, é pouco citada por Mateus e Lucas, e simplesmente inexiste nos relatos de Marcos e João.

Ao longo dos séculos, a Igreja temia que a divulgação dos Evangelhos Apócrifos pudesse levar a uma fragmentação da fé, colocando em dúvida a coesão da mensagem bíblica. Foi quando optou-se pela censura, criando uma blindagem que protegia a doutrina católica.

A própria classificação desse conteúdo como “apócrifo”, sinônimo de “falso” e “duvidoso”, projeta uma imagem ilegítima sobre o que ele representa.

Apesar da rejeição, os manuscritos exerceram uma influência significativa ao longo da história. Têm sido estudados e debatidos por teólogos, historiadores e acadêmicos, fornecendo novas visões para a compreensão da dinâmica religiosa.

Parte de seus elementos foram, inclusive, incorporados à prática popular, mesmo quando negados pelo Vaticano.

Um bom exemplo é o Evangelho de Tiago, o mais conhecido entre os apócrifos. Era apreciado pelos cristãos gregos que viviam sob a proteção de Constantinopla, mas desprezados pelo Ocidente.

Ele apresentava os irmãos de Jesus como filhos de um casamento anterior de José, o que contradizia a informação presente no Novo Testamento, que os classificava como “primos”.

Lourenço explica e comenta os Evangelhos Apócrifos para atingir um público mais amplo, o que incentiva a aceitação da pluralidade de vozes que moldaram o cristianismo.

Por meio da abordagem meticulosa de sua nova edição, além da melhor compreensão dos originais em grego e latim, o historiador abre novas perspectivas para a diversidade cultural presente a partir dos fatos históricos narrados no passado.

Tesouros históricos

Os Evangelhos Apócrifos foram censurados por líderes religiosos ao longo do tempo, mas sua importância histórica e a veracidade de sua origem são indiscutíveis.

1. Os escritos de Tiago (o primeiro, abaixo) foram encontrados em mais de 150 manuscritos em grego, além de traduções semelhantes em copta, siríaco e outras línguas da antiguidade. Em 1945, um conjunto de códices descoberto em Nag Hammadi, no Egito, permitiu aos estudiosos recuperar boa parte desses textos ocultos.

2. Já o Evangelho de Maria Madalena (imagem do meio, abaixo) foi encontrado em um papiro do século V batizado de Codex Berolinensis Gnosticus, adquirido no século XIX pelo arqueólogo alemão Carl Reinhardt.

3. O Evangelho de Tomé (terceira imagem, abaixo) sobre a Infância de Jesus traz uma característica incômoda para os fiéis: mostra um personagem insensível e caprichoso, distante da figura repleta de amor descrita na Bíblia. Também afirma que, na escola, Jesus aprendeu grego antes de hebraico — teoria contestada pelo Vaticano.