Em março de 1933, o Terceiro Reich foi oficialmente proclamado na Alemanha. Poucos dias depois, os nazistas, sob o comando de Adolf Hitler, instituíram o boicote a estabelecimentos comerciais judeus e ordenaram a cobrança de pesados impostos para a comunidade judaica.  Nos discursos para multidões, o Führer exaltava a superioridade ariana e  anunciava como seres inferiores os que não eram nascidos ou tivessem origem germânica. Depois de estigmatizar, Hitler perseguia. Proibiu os judeus de frequentar os mesmos locais dos alemães e vetou a entrada de poloneses na Alemanha.

Em junho de 2016, Donald Trump fez seu discurso de campanha mais incisivo. Criticou latinos sob o argumento de que eles roubavam os empregos dos americanos e os muçulmanos por promoverem o terror. Como um Hitler redivivo, Trump estigmatizou milhões de pessoas, definindo-as como inimigas de uma nação que, pare ele, está acima das outras. Em uma palestra realizada em Washington, conclamou os compatriotas a odiar não apenas quem era, mas parecia diferente. Eleito, Trump cumpriu  o que prometeu durante a corrida presidencial. Proibiu, como Hitler havia feito oito décadas atrás, a entrada em território americano de cidadãos nascidos em países considerados rivais, enxotando-os para fora dos aeroportos. Nos últimos dias, pessoas do Iêmen, Irã, Iraque, Líbia, Síria, Somália e Sudão foram algemadas, interrogadas e, em alguns casos, mandadas de volta para casa do outro lado do oceano apenas porque possuíam um passaporte que Trump julga inapropriado. Até a quarta-feira 1º, 109 pessoas foram detidas em aeroportos nos Estados Unidos e 721 viajantes com vistos válidos foram impedidos de embarcar em voos para o país.

PERSEGUIDOS Parentes aguardam o desembarque de imigrantes em aeroporto americano: medo e insegurança
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Por mais que pareça um exagero comparar as ações desvairadas do novo presidente americano com um dos períodos mais sombrios da história da humanidade, é inegável que, sob Trump, o mundo está ingressando em uma nova era de intolerância. Fantasmas do passado ressurgiram, vultos tenebrosos do ódio voltaram a ter voz. “Identificar grupos por suas diferenças é perigoso e apenas divide a sociedade”, diz Rob Kuznia, coordenador da Fundação USC Shoah, sediada em Los Angeles e que cuida da memória de vítimas do holocausto e de outros genocídios por meio de vídeos-testemunhos. “Uma forma de exclusão leva a outra e o silêncio da maioria em face da injustiça concede a permissão de mais atrocidades a seus autores.” Não é preciso muito esforço para encontrar paralelos entre o discurso de Trump e as máximas do nazifascismo. “Precisamos fazer a América grande de novo e mostrar para o mundo que nós somos os líderes que todos devem seguir”, disse o americano no dia 2 de novembro, pouco antes de ser eleito.

“A Alemanha é o país a ser invejado por ter o povo mais forte e as melhores mentes”, disse Hitler em 1938, um ano antes de afrontar o mundo. No período entre guerras, como são chamados os anos que separam a primeira da segunda Guerra Mundial, o totalitarismo floresceu na Alemanha e Itália porque ambas as nações enfrentavam certo complexo de inferioridade. Fragilizadas pelo colapso econômico e o consequente desencanto da população, elas ansiavam por recuperar as glórias de outros tempos. Nesse contexto, a oratória nacionalista não só encantou multidões como as arrastou para o front. De acordo com as premissas do fascismo italiano e do nazismo alemão, era hora de combater o enfraquecimento da nação. Isso, na ótica nazifascista, só se faz com o combate e a destruição do inimigo.

“América primeiro”, “vamos reconstruir nosso país com mãos americanas e trabalho americano”, “20 de janeiro de 2017 será lembrado como dia em que o povo se tornou o comandante desta nação novamente”, “a América vai começar a vencer”, “juntos tornaremos a América grande novamente”. Isso tudo, é bom lembrar, foi dito por Trump no dia da posse. O novo presidente foi eleito graças aos cidadãos chamados pelos analistas de “angry white man”, os homens brancos com raiva. Eles, mais do que qualquer outra parcela da população, tiveram seus empregos ceifados pelo ocaso econômico das cidades industriais, pelo avanço tecnológico e por uma profunda mudança da sociedade nos últimos 20 anos. Desamparados pelo governo, ressentidos por um declínio sem fim e com um agudo sentimento de traição, esses indivíduos se vingaram na eleição presidencial de tudo o que julgavam ser responsável por suas misérias pessoais. Mais do que qualquer coisa, puniram todo o sistema. Por isso elegeram Donald Trump.

Basta dar uma espiada no mapa dos votos para observar que Trump venceu, com folga, nos subúrbios, nas cidades rurais e no chamado “Cinturão da Ferrugem”, como passou a ser conhecida, de forma pejorativa, a região que se estende pelo nordeste dos Estados Unidos até os Grandes Lagos e que tem sua economia baseada na indústria pesada e de manufatura. É lá, nesses amplos espaços decadentes (daí o “ferrugem”) outrora ocupados por fábricas vistosas, que os homens brancos com formação escolar média fizeram a diferença a favor do presidente Trump. “Agradeço principalmente às pessoas sem instrução, mas trabalhadoras incansáveis, que me colocaram em condições de derrotar Hillary Clinton”, disse o republicano semanas antes da eleição. É para elas que vou governar.”

ÓDIO Soldados alemães abordam judeus em 1943: estigmatizar minorias leva a tragédias humanitárias
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É para elas que está governando.  “Quando o mandatário de um país assume uma postura pública preconceituosa em relação a raça, gênero, religião, nacionalidade ou qualquer outra distinção, ele encoraja a população a declarar o antagonismo que existia, mas que estava contido”, diz Luis Fernando Ayerbe, coordenador do Instituto de Economia e Estudos Internacionais da Unesp. “Isso gera conflitos sociais e aflora comportamentos violentos nas ruas”. Segundo a Ong americana Southern Poverty Law Center, o fenômeno da intolerância ganhou amplitude logo após as eleições de 8 de novembro. Em apenas dez dias, 867 casos de assédio, ódio e intimidação foram registrados nos Estados Unidos, número que pode estar subestimado já que dois terços dos crimes desse tipo frequentemente não são reportados à polícia. Indicadores mostram que, após Trump, os crimes de ódio aumentaram consideravelmente nos Estados Unidos. Os alvos são aqueles que Trump rejeita: muçulmanos, negros e gays.

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ELITE BRANCA NO PODER

A julgar pela aversão do novo presidente a minorias, os episódios de incivilidade tendem a aumentar. Dono de fortuna pessoal estimada em US$ 3,7 bilhões de dólares, Trump formou um governo que corresponde exatamente ao que se pode chamar de elite branca. No novo gabinete presidencial, apenas duas mulheres têm posto de ministro e os latinos foram excluídos pela primeira vez desde 1988. O atual governo conta com o menor número de negros desde a era Ronald Reagan, encerrada há 40 anos.

Na Alemanha de Hitler, os judeus foram tratados como bodes expiatórios. Para justificar as mazelas do País, os nazistas apontavam o dedo para eles, os culpados por todos os males que afligiam a nação. Às mulheres, cabia uma posição secundária na sociedade.

“Guerra é para o homem, maternidade é para a mulher”, dizia uma campanha publicitária nazista. Hitler não teria existido sem o suporte de parte importante da sociedade. A perseguição aos judeus foi largamente apoiada pelo empresariado alemão, que via na política de restrições e perseguições crescentes o caminho para a reconstrução do país.

Durante a campanha e depois da posse, Trump citou a palavra “reconstrução” um sem-número de vezes. Na ótica oblíqua do novo presidente, para reconstruir é preciso destruir primeiro. Como líder máximo dos Estados Unidos, ele desrespeitou instituições e convenções internacionais. A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, telefonou para Trump para explicar que, ao se negar a receber refugiados de guerra em seu país, o presidente rompe com a Convenção de  Genebra. Do outro lado da linha, Trump ouviu Merkel até o fim, mas não voltou atrás em sua decisão. O primeiro-ministro da Austrália, Malcolm Turnbull tentou cobrar do americano o cumprimento da compromisso firmado por Barack Obama de acolher parte dos 1,6 mil refugiados que estão nas ilhas do Pacífico e ouviu como resposta apenas o som repentino do fim da ligação.

Hitler rompeu uma série de convenções internacionais, inclusive o Tratado de Versalhes, assinado pelas potências europeias no fim da Primeira Guerra Mundial e que impôs uma série de restrições à Alemanha. Entre elas, o Tratado vetava a incorporação territorial de áreas perdidas. Em 1º de setembro de 1939, o exército alemão invadiu a Polônia. Começava assim a guerra na Europa.

Em poucos dias de governo, Trump modificou mais a percepção da política externa dos EUA do que seus antecessores o fizeram em sete décadas. “Os Estados Unidos estão deixando um grande vazio de liderança após um longo período de protagonismo no mundo pós-guerra”, diz Gayle Allard, professora de Economia na IE Business School, de Madrid. “Agora, alguém irá se mover para o seu lugar”. A China parece se encaminhar para ocupar o vácuo deixado pelos Estados Unidos. Como a história demonstra, governos totalitários sempre elegem um inimigo número 1 para confrontar e, quem sabe, derrotar. Trump fez isso com a China, a potência global que vê como uma ameaça à supremacia americana. Aos chineses, dedicou acusações como a de roubar um drone americano ou a de criar o conceito de aquecimento global somente para prejudicar a competitividade da indústria americana. Trump também criticou a política militar e cambial do país, ameaçou aplicar pesados impostos aos produtos chineses e causou um enorme incidente diplomático ao ligar para Taiwan, província considerada pela China como rebelde e não reconhecida pelos Estados Unidos há 38 anos.

O mundo aprendeu a lição?

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo mudou – e para melhor. Se as grandes potências reconhecem que foram tolerantes demais com Hitler, demorando para evitar que sua sanha expansionista ganhasse força, nos dias atuais o mundo civilizado parece ter aprendizado a lição.  Desde a posse e como consequência das medidas insanas que vem adotando, Trump recebeu uma saraivada de críticas de líderes mundiais. A própria história mostra que as nações controladas por chefes autoritários vão, cedo ou tarde, sofrer danos, e não apenas no campo diplomático. A economia perde e os cidadãos do país sofrem.

Na semana passada, discutiu-se até a viabilidade da candidatura dos Estados Unidos para sediar os Jogos Olímpicos de 2024 e a Copa do Mundo de 2026. Ao impor restrições para que cidadãos de determinadas nacionalidades entrem no país, Trump põe em risco os dois maiores eventos esportivos do planeta que, afinal, pregam a integração de nações. Como um genuíno déspota, o presidente americano decidiu também perseguir a imprensa, não permitindo que jornalistas de veículos que considera adversários façam perguntas em entrevistas. Pior: seu governo forjou dados, aumentando o número de pessoas que comparecem à sua posse.

Na era nazista, Hitler fechou jornais, calou a oposição e tinha o hábito de mentir a respeito dos indicadores econômicos da Alemanha. Demorou, mas ele foi derrotado. Como legado, a Segunda Guerra dividiu o mundo em dois polos ideologicamente opostos: o capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o socialista, liderado pela União Soviética.
De que lado Trump quer colocar os Estados Unidos agora?

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MEDIDAS EXTREMAS
As primeiras ações de Trump que assustaram o mundo

Mudanças no site da Casa Branca
O presidente retirou do ar a versão em espanhol do site da Casa Branca, que foi criada na gestão de Barack Obama. As seções dedicadas a políticas para mudanças climáticas e a direitos LGBT também foram excluídas da página

Muro no México
A construção de uma barreira física de 3.200 km na fronteira dos Estados Unidos com o México já está em andamento. Para Trump, “uma nação sem fronteiras não é uma nação”. Ele quer ainda que o México pague os US$ 8 bilhões estimados para a obra

Política anti-imigração
O presidente assinou uma ordem executiva que suspende a entrada de refugiados em território americano por pelo menos 120 dias e impõe novos controles durante três meses contra viajantes de sete nações (Irã, Iraque, Líbia, Sudão, Somália, Síria e Iêmen)

Visto para turistas, inclusive brasileiros
Os procedimentos para solicitação de visto para os Estados Unidos também foram alterados, atingindo inclusive brasileiros. Agora, obter o documento será mais difícil, com entrevistas e critérios mais rigorosos

Aborto
Trump proibiu o uso de dinheiro do governo para auxiliar grupos que pratiquem ou assessorem o aborto no exterior, uma das bandeiras da luta do movimento feminista