LÚCIDA VOZ O decano do STF, Marco Aurélio: “Receio pela democracia e pelo Estado de Direito” (Crédito:Pedro Ladeira)

A mais elementar, a mais conhecida e a mais exata definição do Ministério Público é aquela que o coloca como “advogado da sociedade” — e tanto é assim que cabe ao MP a titularidade das ações penais. Causa estranheza, portanto, a nota emitida pela Procuradoria-Geral da República, na noite da terça-feira 19, que por uma questão de lógica traduz o pensamento do procurador-geral da República, Augusto Aras. Igualmente estranho é o fato de Aras deslocar somente para o Poder Legislativo a responsabilização do presidente Jair Bolsonaro pela sua criminosa condução do País ao longo da pandemia do novo coronavírus. Iniciar um processo de impeachment devido à crime de responsabilidade, isso, sim, compete à Câmara dos Deputados. Mas a cidade de Manaus ter se tornado o cemitério que se tornou, com o governo federal sabendo que faltaria oxigênio e que pessoas morreriam asfixiadas, aí trata-se de crime contra a vida. Tal crime também está previsto na Lei do Impeachment (1.079/50), na parte que traz consigo o artigo 141 da Constituição de 1946, dispondo sobre a “inviolabilidade dos direitos concernentes à vida”. Ou seja: é dever funcional e é dever de ofício que a Procuradoria-Geral da República tome providências nesse campo criminal.

ARBÍTRIO

• O “estado de defesa”, insinuado por Aras, restringe o direito a reuniões, o sigilo de correspondência e qualquer cidadão pode ser preso, acusado de crime contra o Estado

Diz a nota: “Eventuais ilícitos que importem em responsabilidade de agentes políticos da cúpula dos Poderes da República são da competência do Legislativo”. Quanto ao crime de genocídio, nesse ponto a PGR tartamudeia — embora o procurador saiba, desde os bancos da faculdade, que esse aspecto compete ao Ministério Público mandar investigar. “A Procuradoria-Geral da República, de forma triste, se tornou uma advogada de defesa da Presidência da República”, define Carlos Lupi, presidente nacional do PDT. As entrelinhas da nota de Aras são, no entanto, mais perigosas que o desleixo funcional que se faz claro. Por que, nesse momento em que o Brasil padece com mais de duzentas e dez mil mortes por Covid, vem a PGR falar em “estado de defesa”? O órgão comandado por Aras afirma que o Brasil está em “estado de calamidade” devido à pandemia e que tal estado é a “antessala do estado de defesa”. Primeiro: é bom avisar o procurador que o decreto que instituiu o “estado de calamidade” venceu no dia 31 dezembro. Segundo: falar em “estado de defesa”, evocar essa figura jurídica que só cabe em caso de manutenção da ordem pública, diante de uma situação de anomia social que coloque gravemente em risco o Estado Democrático de Direito, significa, nesse instante, querer amedrontar a Nação e ameaçá-la com um regime ditatorial — ele permite que se proíba reuniões, que se intercepte correspondência e ligações telefônicas, e, mais apavorante a lembrar os anos de chumbo, que se prenda sem fundamentação da Justiça qualquer indivíduo que Jair Bolsonaro acuse de “crime contra o Estado”.

“A Procuradoria-Geral da República, de forma triste, tornou-se uma advogada de defesa da Presidência da República” Carlos Lupi, presidente nacional do PDT (Crédito:Divulgação)

Há um genocídio no país

A PGR argumenta que é preciso “temperança e prudência em prol da estabilidade institucional”. Só faltou falar de canja de galinha. O procurador se esquece de que, com certeza, não é a morte daqueles que partiram com os pulmões explodindo por falta de ar que planta a instabilidade no País. Não são os mais de duzentos e dez mil mortos. É, sim, o presidente da República que tem a obrigação constitucional de zelar pela vida de todos os brasileiros. Há um genocídio no Brasil. O fato de se querer Justiça em nome dos que morreram por incúria do Poder Executivo não causa nenhuma instabilidade. A nota da PGR, essa sim, provoca mal-estar social e político ao acenar com uma concentração de prerrogativas de exceção nas mãos do mandatário. É inevitável, embora estarrecedor, que a PGR assim tenha se manifestado pouco depois de o capitão da cloroquina cometer mais um de seus crimes de responsabilidade ao dizer que são “as Forças Armadas que determinam se um povo terá democracia ou ditadura”. Vê-se uma coincidência de tempo, no mínimo, nefasta. Em carta aberta, subprocuradores protestaram: “O procurador-geral da República precisa cumprir o seu papel de defesa da ordem jurídica, devendo adotar as necessárias medidas investigativas a seu cargo (…)”. Do Supremo Tribunal Federal, em defesa do Estado de Direito, veio a lúcida voz do decano, Marco Aurélio Mello: “Considero preocupante a nota oficial da PGR. Não vejo com bons olhos esse movimento de quem precisa se colocar como fiscal maior da lei. Receio pelo Estado de Direito”.