O médico Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, acaba de assumir a coordenação dos testes de coronavírus no estado de São Paulo. É um cargo fundamental nesses tempos de pandemia. Sob seu comando está a plataforma de laboratórios de diagnóstico da doença, montada pelo governo do estado, que terá capacidade para realizar 10 mil exames por dia. Acaba de chegar da Coréia do Sul uma encomenda de 575 mil testes feita pelo Butantan. Participam da plataforma 38 laboratórios públicos e privados, entre eles o Instituto Adolfo Lutz, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e o Hemocentro de Ribeirão Preto. À frente da iniciativa, Covas pretende acelerar o processo de testagem e contribuir para impedir o avanço explosivo da Covid-19 no estado. Na quarta-feira 22, um passo importante foi dado: o governo conseguiu zerar a fila para realização de testes que contava com mais de 17 mil pessoas com amostras pendentes de análise. “A realização de testes em massa irá nos ajudar a ter uma fotografia dessa epidemia mais próxima da realidade”, disse Covas para a ISTOÉ. “E permitirá que as autoridades tomem decisões fundamentadas em fatos”

Qual é a importância de se fazer testes em larga escala?
Os testes, seja o RT-PCR ou o teste de anticorpo, que aqui no Brasil é o chamado teste rápido, têm a finalidade de dar uma fotografia da epidemia. Não são os únicos indicadores, existem outros, como o número de mortes, a velocidade da disseminação, mas os testes, sem dúvida, são um importante indicador. Não é uma fotografia do dia, mas de duas, três semanas atrás, porque existe um atraso – o indivíduo se infecta, demora um tempo para a viremia (presença do vírus no sangue), depois aparecem os sintomas, aí ele procura um médico e colhe o teste. E os testes são importantes para você tomar medidas, para tentar entender como a epidemia está se comportando e informar os tomadores de decisão para que eles possam adotar providências.

Quais providências?
Principalmente essas medidas de afastamento social, mais ou menos intenso, dependendo da situação epidemiológica. E tem que prever a ocupação do sistema de saúde. Esse é um ponto importante, visto que o maior desafio que a epidemia tem causado nos vários países onde ela começou antes do Brasil é exatamente a sobrecarga do sistema de saúde. É nesse contexto que os testes são importantes. Existem estratégicas diferentes porque existem dois tipos de teste, RT-PCR, que identifica o vírus e, portanto, serve para a fase aguda da infecção, para os indivíduos que têm sintomas. E o teste de anticorpos, aplicado em indivíduos assintomáticos, que vai positivar-se tardiamente. Para efeitos populacionais, para pesquisar o percentual da população contaminada, o teste rápido é importante.

Os testes no Brasil estão muito abaixo do necessário?
Sem dúvida nenhuma. Se você pegar a média dos países, você vai ver que poucos conseguiram fazer um número significativo de testes. Isso por vários motivos. Os Estados Unidos, há cerca de 20 dias, estavam com dificuldades porque não tinham testes. Esse é o primeiro ponto. Como houve uma demanda muito grande em termos mundiais, o insumo não está disponível na hora. Você compra e demora a chegar. Isso explica parte das dificuldades. O segundo ponto é a qualidade dos testes. Muitos testes, principalmente os rápidos produzidos em larga escala pela China, apresentaram problemas de qualidade.

O Brasil tem uma estratégia de testes?
No Brasil, até este momento, o teste de RT-PCR, pela norma do Ministério, está reservado aos pacientes que tenham manifestações clínicas graves, aos que estão internados, aos profissionais de saúde e aos óbitos. Em minha opinião, o patamar está baixo e tem que ser ampliado. Com relação aos testes rápidos, a gente também não tem uma política definida. O Ministério da Saúde começou a distribuí-los e ainda não sabemos exatamente se serão feitos em massa, para todos aqueles que quiserem fazer, ou se serão feitos por populações definidas, para poderem voltar mais rapidamente ao trabalho, como os próprios profissionais da saúde ou os funcionários de segurança pública.

Em São Paulo, a situação é igual?
Aqui no estado de São Paulo nós já temos um planejamento neste sentido. O governo comprou uma grande quantidade de testes RT-PCR. Foi feita uma importação da Coreia e já chegaram cerca de 575 mil testes de um total de 1,3 milhão. Isso serviu para dar um fôlego imediato, acabamos com a fila de testes e estamos prevendo uma capacidade ampliada para realizá-los, na medida em que a rede de laboratórios que foi constituída possa se qualificar.

E com relação aos testes rápidos?
Com relação aos testes rápidos, nós estamos recebendo alguns kits do Ministério e vamos ter também uma política de acompanhamento da epidemia. A gente vai acompanhar a população com um teste que detecta anticorpos, chamado de quantitativo, que quantifica os anticorpos e permite saber se o indivíduo está de fato imunizado, se ele consegue se proteger contra uma nova infecção do vírus. Vamos fazer um inquérito soroepidemiológico de acompanhamento com populações definidas por faixa etária e regiões geográficas, para ver como a epidemia evolui. Isso modelará as medidas de afrouxamento ou de intensificação do afastamento social.

Só nos resta o afastamento social?
É a única medida a ser tomada. É uma epidemia que não tem vacina, não tem tratamento efetivo e tem uma gravidade clínica importante. Os pacientes que são acometidos pela doença exigem internação, leitos semi-intensivos e UTI. Se nós não diminuirmos a velocidade de propagação do vírus com as medidas de isolamento social, fatalmente o nosso sistema de saúde será comprometido. Mesmo com esses acréscimos de leitos que estão ocorrendo com a construção de hospitais de campanha, se a velocidade de expansão do vírus for explosiva, o sistema de saúde será fatalmente atingido e o prejuízo é para todos porque os hospitais existem para tratar pessoas doentes, não só pessoas com coronavírus. Com uma epidemia de grandes proporções, você sobrecarrega todo o sistema de saúde e causa um colapso social. É o que aconteceu na Itália e na Espanha. É difícil até de acreditar que países desenvolvidos possam ter enfrentado situações tão complicadas.

O senhor se surpreende com a situação na Itália e na Espanha?
São países que têm uma estrutura razoável de saúde, são países menores e com uma população bem mais assistida. O Brasil é um país continental, que tem uma heterogeneidade muito grande, não só de concentração de pessoas, de densidade demográfica, mas também na estrutura de atenção de saúde. Nas regiões metropolitanas o risco é maior, principalmente nas periferias, onde existe um grande adensamento populacional, maior número de pessoas por habitação, menor infra-estrutura e menor recurso de saúde. Além disso, as pessoas precisam se mobilizar diariamente para conseguir o seu sustento.

Como o senhor avalia o isolamento nas periferias neste momento?
Quando se fala em isolamento social, é muito diferente falar para pessoas das classes A, B e C, que são pessoas que têm acesso à informação, que têm um nível educacional diferenciado, do que falar para as classes D e E, que têm mais dificuldades até para compreender a mensagem. Isso se fosse um ambiente tranquilo do ponto de vista da mensagem. Mas nós estamos no meio de sinais trocados. Enquanto os especialistas apontam a necessidade de isolamento, há toda uma corrente política dizendo que não pode ser assim porque isso vai trazer prejuízo econômico. Existe uma dicotomia de orientação. E nós vamos sentir o impacto dessa divergência daqui a três, quatro semanas, quando atingiremos a velocidade maior dessa epidemia e veremos, então, se estaremos preparados ou não.

A politização da pandemia atrapalha o bom desenvolvimento das medidas de controle?
Não há dúvida. E é uma discussão que outros países já fizeram antes do Brasil. Aqueles que foram pelo não isolamento se deram mal. Todos voltaram atrás e quando recuaram já era um pouco tarde e isso explica o grande número de mortos que estão tendo, como os Estados Unidos ou a própria Inglaterra, que voltaram atrás em sua política inicial. Tivemos vários exemplos de países que voltaram atrás rapidamente porque o número de mortos disparou. Do ponto de vista técnico, não há mais que se discutir o isolamento depois do exemplo chinês. Mesmo com a maior população do mundo, a China conseguiu controlar a epidemia e evitar uma catástrofe.

Qual é o país que o senhor acha que está fazendo o melhor trabalho, que serve de modelo a ser seguido?
Você tem que aproveitar as experiências que deram certo em vários países e adaptar para nossa realidade. Por exemplo, um país que conseguiu, de uma certa forma, manter a epidemia sob controle até o momento foi a Coreia do Sul. Mas a Coreia iniciou as medidas preventivas muito precocemente e adotou uma política de isolamento dos casos bem no início da epidemia. Não só pela testagem, mas também pela medição de temperatura e pelo acompanhamento das pessoas que chegavam do exterior, fazendo o isolamento domiciliar. Isso funcionou. Mas tem que lembrar que a Coreia é um país, além de rico, com uma população pequena e extremamente disciplinada. É uma realidade muito diferente da nossa.

O governo brasileiro foi negligente?
Não tomamos nenhuma medida inicial de contenção. O vírus rodava o mundo e não tomamos nenhuma medida eficiente de identificação dos passageiros que chegavam, testagem desses passageiros e isolamento domiciliar. Nossas porteiras ficaram abertas para o vírus. Aguardou-se o primeiro caso positivo e até então não se tomou nenhuma medida efetiva. Logo que esse primeiro apareceu já existiam milhares de pessoas contaminadas. Um caso positivo com transmissão comunitária representa dezenas de outros casos na população.

Dá para saber quantos?
Em média, um caso positivo representa 10% da amostragem. Na Itália, houve um cálculo de 9% da população e na Espanha chegou a 15%. Nós chamamos isso de taxa de ataque. Se as medidas não forem tomadas no momento certo, você entra na transmissão comunitária e não consegue mais conter a epidemia. Só resta a mitigação. Há um esforço para identificar todos os sintomáticos e isolá-los, assim como seus contatos do isolamento domiciliar. Em relação a outros países essas medidas foram tomadas antes e isso nos deu um certo tempo para trabalhar na prevenção, comprar respiradores, e montar hospitais de campanha. Isso nos deu algum prazo, mas esse prazo agora está chegando no seu limite.

Qual é o ciclo dessa epidemia, quando se chegará a um ponto de contenção?
Para chegar num ponto de contenção naturalmente, a epidemia teria que atingir mais de 50% dos indivíduos suscetíveis. Não estou dizendo a população em geral, estou dizendo os suscetíveis, que são os indivíduos que podem adquirir a doença e estão expostos. Se metade dessa população for atingida, a velocidade de reprodução cai progressivamente até o vírus parar de circular ou circular muito pouco. A epidemia é interrompida porque só encontra indivíduos imunizados.

É o mesmo efeito da vacinação?
Sim. Isso se chama proteção de rebanho, que é a mesma da vacinação. Você vacina exatamente para isso. Quando você atinge índices de vacinação de 70%, 80%, 85% a doença não se instala. Ela não consegue se transmitir. Isso acontece com a epidemia natural. Se você não tem a vacina, a doença vai sendo transmitida até atingir um patamar elevado de contágio que impeça sua continuidade, a continuidade do ciclo. Na situação que estamos vivendo é um pouco diferente porque trata-se de diminuir a velocidade com que isso vai acontecer. O ciclo da epidemia é inevitável, mas o que se espera é reduzir a velocidade do contágio. Esticando isso no tempo, você consegue dar continuidade ao atendimento dos pacientes, aos pacientes graves e, ao mesmo tempo, a população vai adquirindo o vírus e desenvolvendo a imunidade.

Quando teremos 50% dos suscetíveis infectados?
O exemplo que temos da fase final da epidemia é o chinês. O vírus começou a circular na China em novembro. Os primeiros casos clínicos apareceram em dezembro. Demorou seis meses e agora ela está decaindo. São seis, sete meses de evolução da epidemia. Esse é o ciclo que se espera que a gente tenha.

E as vacinas, quando chegarão?
Existe hoje em torno de meia centena de vacinas em desenvolvimento no mundo que são promissoras. Algumas delas já estão na fase de estudo clínico e começam a ser aplicadas em pacientes. Esse é o ciclo normal de desenvolvimento. Você tem a vacina, faz o teste em animal, faz o teste em humanos para definir a segurança e, feito isso, vai para análise e registro. Só aí ela entra em produção. Esse ciclo demora normalmente três ou quatro anos para uma vacina normal. Nessa urgência mundial existe uma grande corrida: já há vacinas em fase adiantada de estudo clínico, mas mesmo que sejam eficazes e seguras, terão que ser produzidas em massa. E esse é o grande problema. No Butantan, onde se produz uma grande quantidade de vacinas para gripe todo ano, o ciclo de produção é de sete meses. Em menos de doze meses não teremos uma vacina. E esse prazo é otimista. Provavelmente para essa onda epidêmica nós não teremos vacina, teremos para as próximas ondas.

O senhor prevê outras ondas?
Tudo que está acontecendo com esse vírus é novo. A ciência está aprendendo coisas absolutamente novas sobre virologia com esse coronavírus. Não sabemos se ele vai se comportar como o vírus da gripe, que muda rapidamente e todo ano volta, ou se vai desaparecer, como desapareceu o coronavírus da SARS ou o da MERS. Se ele voltar periodicamente haverá necessidade da vacina. E mesmo que ele não volte agora, pode voltar lá na frente. Se tivéssemos uma vacina contra a SARS e a MERS, provavelmente ela poderia estar sendo adaptada para o novo coronavírus.

O que mais é novo nesse vírus?
Por exemplo, na própria Coreia e na China indivíduos que haviam sido considerados curados, apresentaram novas manifestações clínicas. Ou seja, a resposta imunológica provavelmente não é protetiva para 100% dos casos. Isso abre a possibilidade de ondas sucessivas de infecção. É uma preocupação. É preciso estudar isso rapidamente para verificar se é o vírus está adaptando ao organismo, por uma mutação, ou se é um comportamento dependente do hospedeiro, que sofre de alguma falha no sistema imunológico. Essa volta da infecção foge um pouco do modelo clássico.

A ciência brasileira pode contribuir de alguma maneira para controlar o novo coronavírus?
Não há dúvida. O Brasil tem um grande parque científico, profissionais competentes e muitos estudos sendo feitos. Mas nossa velocidade não é a mesma de outros países, como Estados Unidos, Inglaterra ou China. Em um desses países provavelmente serão feitos os grandes desenvolvimentos. O parque de ciência deles funciona muito rápido. Várias vacinas que estão sendo testadas foram desenvolvidas por grandes laboratórios que têm uma capacidade de produção científica em massa. Nós vamos obviamente dar contribuições importantes, isso sempre acontece com o Brasil, mas a escala é diferente.