Em entrevista exclusiva à ISTOÉ, Pelé diz que Ronald Reagan foi o presidente que mais reconheceu o seu talento, sente-se na obrigação de dar bom exemplo às crianças e avalia que a política no Brasil não vai bem

Sentado em uma cadeira suficientemente alta para que conseguisse apoiar os pés numa caixa de ferramentas (ora apoiava o direito, ora o esquerdo), lá estava ele, aos 79 anos de idade e há meio século de um lance imortal: o pênalti no jogo contra o Vasco, em 1969, quando marcou seu milésimo gol. Está-se falando, é claro, de Pelé. Pois bem, lá estava ele à espera da reportagem de ISTOÉ para uma entrevista exclusiva, no museu que o homenageia na cidade do litoral paulista de Santos. Santos de Santos Futebol Clube, o time no qual ele se tornou o Rei do Futebol — enriquecer, mesmo, isso só se deu quando despediu-se dos gramados no Brasil e foi jogar nos EUA.

Pelé passou por cirurgias de próstata e no quadril e por problemas na coluna, nos meniscos e tornozelos. Mas Rei é Rei, e Sua Majestade Pelé não perde o bom humor. Basta chamá-lo de senhor e ele responde: “senhor não, vão pensar que estou velho! Me chame de você”. Na sequência, a privilegiada repórter que iria entrevistá-lo, signatária dessa reportagem e entrevista, ganhou autógrafos nas três camisetas que havia comprado — duas com o emblema do Santos, a terceira a azul que compôs o uniforme da Seleção Brasileira em 1958, quando o País se sagrou pela primeira vez campeão mundial, na Suécia. Na conquista desse título, o então jovenzinho Pelé de 17 anos chorou copiosamente no ombro do já experiente goleiro Gilmar, ao se dar conta da importância da glória da qual fora fator determinante.

Era a primeira vez que os olhos do planeta se maravilhavam diante daquele craque. Aliás, tão craque de bola, que, certa vez, ganhou do craque das palavras Nélson Rodrigues o golaço de um elogio: “se Pelé não tivesse nascido gente, teria nascido bola”.

Como se sente em meio à festa pelos 50 anos de seu milésimo gol?
É difícil explicar um sentimento: será que aconteceu comigo mesmo? Será que já faz tanto tempo assim? O tempo passa muito rápido, passa despercebido, quando a gente vê ele já voou. Não tinha nada programado para o milésimo gol, saiu mesmo. Antes da cobrança, quando vi todo o time perfilado no meio do campo, eu tremi. Senti medo de errar. Foi legal, mas tudo isso mexe com a gente.

Mexeu muito?
Sim, mas hoje estou em um momento diferente, porque já não sou aquele garoto, sou uma pessoa mais madura. Adulta. É engraçado isso, né?

Como você está atualmente?
De saúde continuo igual.

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Além da saúde?
Trago uma responsabilidade muito grande porque tenho a certeza de que eu magoaria muitas pessoas se não me preocupasse com o País. Não quero que aconteçam coisas ruins. A minha responsabilidade é de fato muito grande.

Maior hoje que na época do milésimo gol, marcado no Maracanã na noite de 19 de novembro de 1969?
Naquela época tudo ia acontecendo, agora sou mais consciente de como as coisas funcionam. Sei que não posso fazer uma besteira, não posso sair fazendo qualquer maluquice na rua porque tem muita gente que vai ficar triste, vai ficar decepcionada, e eu faço tudo para que isso não ocorra.

Por que está falando isso? Por que tanta responsabilidade?
Sei que muitas crianças querem imitar o Pelé, e não posso dar um exemplo ruim. Sou um ser-humano normal, possuo defeitos. Mas tenho de ter fé e pedir a ajuda de Deus para não influenciar negativamente.

Ao fazer o milésimo gol, você falou para cuidarmos das nossas crianças. Como vê agora a situação delas?
Infelizmente, talvez porque a população esteja maior, temos um problema muito mais sério. Há 50 anos, eram crianças que roubavam, que brigavam em turmas, havia o trombadinha na rua. Infelizmente as crianças de hoje já andam com revólver, matando as pessoas. Estamos em uma fase bem pior. As coisas aconteceram de uma forma diferente do que estávamos pleiteando. Nós pedimos educação, mas o que temos são muitos bandidos, tantos ladrões, tantos grupos aí.

“Quando vi os meus colegas de time perfilados no meio do campo, senti medo de errar a cobrança do pênalti do milésimo gol. Tremi”

O Brasil te tratou da forma que você esperava? Ou internacionalmente foi melhor?
Acho que lá fora, muitas vezes, sou mais querido. No Brasil, muita gente critica o que eu faço. Aí fico pensando se tive culpa ou não, se de fato errei, até porque às vezes a gente erra pensando que está fazendo o certo e o melhor.

Qual o presidente de um país que mais reconheceu o seu talento?
Foi o presidente americano Ronald Reagan. Graças a Deus, politicamente, fora do Brasil nunca tive problema. Acho que isso, indiretamente, ajuda o Brasil também, porque é uma promoção para o nosso País.

Você fundou há alguns anos a Pelé Company. Está satisfeito com a gestão dos negócios?
Na realidade, eu autorizei que meus sócios fundassem e dei uma força. Estamos muito felizes. Mas eu não considero importante somente o retorno financeiro. É importante, também, o fato de eu não colocar a marca Pelé em assuntos de religião, não relacioná-la com bebida alcoólica nem tabagismo. Imagina se eu fosse fazer propaganda de cigarro ou de bebida?

Como vê o Brasil politicamente?
Está muito mal, porque não há uma coordenação entre os políticos. O Brasil está atravessando um momento chato. Espero que melhore, mas está muito ruim. Sou muito convidado para montar partido político ou para trabalhar em algum que já existe. Mas não preciso de partido para defender meu querido Brasil.

Quem é o melhor jogador da atualidade?
O Neymar, o Cristiano Ronaldo e o Messi são os que hoje mais disputam essa posição. Para mim o mais completo ainda é o Messi. .

Hoje, as cifras do futebol são milionárias. Isso é bom ou ruim para a formação do caráter de jovens atletas?
Na minha época era a mesma coisa, é sempre tudo igual. Depois de me despedir do Santos, tive propostas para jogar na Itália, Espanha, em Portugal e na Inglaterra. Fui para o Cosmos porque queria promover o futebol e eles tinham um projeto maravilhoso para as crianças de lá. Hoje há excelentes jogadores nos EUA dos quais ninguém fala. O futebol é meio complicado.

O envolvimento com mulheres nas concentrações pode atrapalhar o desempenho?
Se o jogador se apaixonar, aí pode atrapalhar, com certeza. Hoje tem muita liberdade, tem artistas e jogadores saindo para passear, vão e voltam. Naquela época não era assim, os técnicos e dirigentes proibiam visita nas concentrações porque não queriam confusão.


Tostão escreveu que, antes de entrar em campo, você deitava e fechava os olhos. Em que pensava?
Antes das partidas, os meus colegas ficavam conversando e eu preferia me isolar, saía um pouco do meio, gostava de sentar. Ficava pensando no jogador adversário que iria fazer a minha marcação. Os caras ficavam sempre me perturbando, dizendo que eu ficava pedindo ajuda para meu santo.

E ficava mesmo?
Sim. Um pouco sim, rezava para eu não me machucar, entende? Pedia isso sempre.

Qual é o santo ou a santa de sua devoção?
Nossa Senhora Aparecida. Ela é minha protetora.


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