Em seus últimos anos de vida, Elza Soares (1930-2022), com mobilidade reduzida, costumava ficar horas olhando para a Praia de Copacabana, de dentro do apartamento onde morava, à beira-mar. “A gente não precisa andar para caminhar por aí”, dizia.

Cantora do milênio, sambista a vida toda, ela ressignificou sua carreira a partir da segunda década dos anos 2000, quando caminhou por assuntos da nova geração: racismo, violência contra a mulher e desigualdade social. São dessa fase os álbuns A Mulher do Fim do Mundo (2015), Deus É Mulher (2018) e Planeta Fome (2019).

O que não era possível prever é que o melhor da Elza do século 21 estaria guardado para o álbum No Tempo da Intolerância (Deckdisc), que chegou às plataformas digitais na sexta-feira, 23, um ano e meio após sua morte, e no dia em que ela completaria 93 anos. Gravado em 2021, o disco traz dez canções inéditas – oito com sua assinatura. É carioca, black music e suingado, coisas que marcaram sua trajetória.

BANDEIRAS

Quando Elza pode falar para Elza, as bandeiras que empunhou mais ostensivamente nos últimos anos ganharam mais legitimidade. A sonoridade, agora deslocada do peso do toque paulista para o universo carioca, soa como uma nova revolução da cantora. Parece tudo novo de novo.

O samba soul que dá nome ao álbum, assinado por Elza em parceria com Pedro Loureiro, Jefferson Junior e Umberto Tavares, relata: “Mas eu apanho de todos os lados/ Eles dizem que eu sou polêmica/ Como dizia Luther King/ Se você quer um inimigo/ É só falar o que pensa”. Conectada com essa, está Coragem, também assinada pelo quarteto. Nela, Elza anuncia: “Se quem cala consente/ A minha boca vai continuar/ Sendo uma arma letal”. A cantora, desde quando andava pelas ruas de Água Santa, cantarolando com sua voz rouca, sabia que sua luta se daria pelo que sairia de sua boca.

Em Pra Ver Se Melhora, uma letra, criada a partir de uma lista de compras de Elza, pede por justiça e pelo fim da fome. O surpreendente bolero Te Quiero – e havia quantos anos Elza não gravava um – foi feito a partir de uma carta de amor escrita pela cantora a um namorado. Ela nunca a enviou.

Produzido por Rafael Ramos, com direção artística de Pedro Loureiro, No Tempo da Intolerância ainda traz Elza lida por Rita Lee, em uma de suas últimas composições. Para a cantora, Rita escreveu, e Roberto de Carvalho musicou, Rainha Africana. “Eis-me aqui rainha africana/ Brazuca sul-americana/ Poderosa no meu trono”, declara a letra que Rita Lee disse ter “baixado” em 10 minutos. Outra roqueira, Pitty, enviou Femielza. Outra baiana, Josyara, assina com Elza a faixa Mulher pra Mulher (A Voz Triunfal), um incômodo papo entre uma mulher preta e uma branca.

Encontrada por Ramos, uma melodia inédita de Dona Ivone Lara (1921-2018) ganhou letra de Elza e Loureiro e se transformou no samba No Compasso da Vida. Nele, estão as tais viagens que Elza fazia sem sair de sua janela de Copacabana.

Quando Pedro Loureiro começou a trabalhar com Elza Soares, por volta de 2015, soube de um caderno no qual a cantora anotava listas de compras, tarefas de inglês, pensamentos e letras de música. Ela admitiu a Loureiro que gestava havia tempos um disco carioca, forte, black music e que falasse de seu povo preto. Esse disco, ou o conceito dele, estava nesse caderno. Mas o caderno, em que ela escrevia desde os anos 1980, estava perdido havia tempos.

NOVAS LETRAS

Em 2018, no entanto, em uma mudança de apartamento, o objeto apareceu. Começou aí o quebra-cabeça para montar as letras para o álbum. Para ajudar, os compositores Jefferson Junior e Umberto Tavares foram convocados e houve a necessidade de fazer ajustes em letras, métricas e rimas para que as canções ganhassem sentido.

No Tempo da Intolerância começou a ser feito assim que o álbum Planeta Fome, de 2019, ficou pronto. Elza tinha urgência em fazer o novo, que vinha sendo gestado havia três décadas. “Foi produzido como ela desejou”, garante Loureiro. “Não é um junta aqui, junta ali.”

Elza colocou as vozes nas composições em 2021. A última foi a de Rita Lee. O plano era lançá-lo neste ano – quis o destino, sem a presença de Elza. Ela ouviu No Tempo da Intolerância ainda sem a produção final. A Loureiro, emocionada, falou: “Acertei na veia nesse, cara!”. Ele conta que ela tinha outros “guardados”. “Se ela não quis lançar na época, não faz sentido lançar agora. O disco que ela queria é o No Tempo da Intolerância”, concluiu o companheiro.

No Tempo da Intolerância

Plataformas digitais (vinil, no 2º semestre)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.