No teatro com ‘Ficções’, Vera Holtz fala sobre afastamento da TV e ‘Avenida Brasil 2’

Em entrevista à IstoÉ Gente, a atriz reflete sobre a potência de 'Ficções', revisita sua trajetória no teatro e discute arte, política e o papel da mulher no palco

Vera Holtz
Vera Holtz Foto: Foto: Ale Catan

Por quatro décadas, Vera Holtz tem desafiado classificações simples. É dessas artistas capazes de atravessar gêneros, linguagens e gerações, circulando pela comédia, pelo drama, pela televisão, pelo cinema e pelo palco com uma naturalidade rara. Aos 72 anos, seu nome não apenas evoca solidez: evoca inquietação, ousadia, ruptura. Não é surpresa, portanto, que seja ela a figura por trás de ‘Ficções’, uma obra que se tornou um fenômeno do teatro brasileiro contemporâneo, desses que dialogam com o tempo presente sem jamais subestimar a inteligência de quem assiste.

De volta ao Teatro FAAP, em São Paulo, onde cumpre sua terceira temporada até dezembro de 2025, ‘Ficções’ emerge como um convite à reflexão sobre aquilo que nos organiza como espécie: crenças, mitos, sistemas políticos, economia, religião, linguagem e as múltiplas ficções coletivas que sustentam as estruturas humanas. Inspirado no best-seller global Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, de Yuval Noah Harari, o espetáculo dirigido por Rodrigo Portella acumula prêmios, indicações e plateias lotadas desde sua estreia. São mais de 160 mil espectadores, uma longa circulação pelo Brasil, três meses em Portugal e, sobretudo, um impacto emocional que Vera descreve como “profundamente transformador”.

A encenação é um híbrido singular: teatro, filosofia, humor, música e jogo cênico se entrelaçam. Em cena, Vera se multiplica em diversas identidades e conduz o público a um percurso que é tanto racional quanto sensorial. Ao seu lado, o músico italiano Federico Puppi, com seu violoncelo, desenha uma dramaturgia sonora que faz do espetáculo um duólogo entre palavra e vibração. Não se trata apenas de assistir; trata-se de pensar, sentir e se rever.

Nos últimos anos, a atriz tem se dedicado majoritariamente ao teatro, num movimento que ela define como “natural, caótico e extremamente vital”. Entre prêmios importantes, como Shell e APTR de Melhor Atriz, reconhecimento de crítica e plateias emocionadas, Vera agora olha para trás com o distanciamento de quem sabe que ‘Ficções’ não é apenas uma obra: é um capítulo marcante de sua trajetória.

Em entrevista à IstoÉ Gente, Holtz revisita o processo, comenta escolhas estéticas, aborda o protagonismo feminino, reflete sobre teledramaturgia, sobre arte e sobre o estado emocional do país, sempre com a lucidez e o frescor que a tornaram uma das intérpretes mais respeitadas do Brasil.

Vera Holtz em cena em ‘Ficções’ (Foto: Ale Catan)

Ficções segue em cartaz no Teatro FAAP até dezembro de 2025, em sua terceira temporada. Vera, o que mantém viva a potência do espetáculo?

Vera Holtz: O encontro. A potência vem do encontro entre a obra e a plateia. É um espetáculo que só acontece coletivamente. Instigamos e provocamos o público o tempo todo, sem dar respostas prontas, falando sobre a humanidade e sua extraordinária capacidade de criar e de crer coletivamente.

A peça é inspirada no best-seller Sapiens, do Harari. O que mais te fascinou na obra e te motivou a transformá-la em teatro?

Vera Holtz: Eu fui convidada para fazer Ficções. A obra foi comprada pelo Filipe Heráclito, que passou anos planejando essa produção. Depois ela passou pela adaptação e direção do Rodrigo Portella. Quando chegou até mim, já tinha sido vivenciada por outras mãos e já vinha com a ideia de ser interpretada por uma mulher. Eu recebi a obra desse jeito.

O espetáculo aborda as ficções coletivas que moldam a humanidade. Qual delas você enxerga com mais impacto hoje?

Vera Holtz: Todas: dinheiro, leis, religiões, idiomas, nomes das coisas, ideologias… tudo impacta. A humanidade não existe sem seus mitos, que mudam conforme cada época. A peça até toca em uma ficção específica: a ideia de que algumas pessoas seriam “privilegiadas”, como se uns nascessem para ser boi e outros parte da boiada. Eu mesma uso algumas ficções, religião, dinheiro, porque fazem parte da vida. Mas a pergunta que fica é: será?

A narradora da peça é uma mulher, muitas vezes você mesma assume essa voz. Como surgiu essa escolha?

Vera Holtz: A ideia foi da Alessandra Reis, uma das produtoras. Ela achava que, no momento atual, não faria sentido contar a história da humanidade, mesmo em recorte, sem uma voz feminina, pelo protagonismo das mulheres hoje. Concordei totalmente. Acho muito interessante que essa história seja contada por um sapiens fêmea.

Você interpreta múltiplos papéis no palco. Como funciona a transição entre identidades tão distintas?

Vera Holtz: O espetáculo é um grande jogo. Criamos regras do tipo: “Se eu disser que sou um asno, vocês acreditam que sou um asno. Se digo que sou um trigo, vocês acreditam que sou um trigo”. A transição vem mais da mudança de ritmo, de atmosfera, e da forma de levantar questões, do que de uma mudança de interpretação propriamente dita.

O músico italiano Federico Puppi está em cena com você. Como é essa parceria?

Vera Holtz: A palavra e a música estavam na concepção desde o início. Ensaiamos juntos desde o primeiro momento para ver se tínhamos química. O violoncelo tem uma relação extraordinária com a voz humana. É um duólogo entre música e palavra: o que você não compreende pela palavra, sente pela música.

A montagem sugere que moldamos o mundo, mas não nos tornamos mais felizes?

Vera Holtz: Não falamos exatamente disso. Falamos da nossa capacidade de moldar o mundo. E, se você pode moldar, pode criar. E se cria, pode descriar. Tudo é ficção, tudo é um sistema de crenças. A peça provoca nessa direção: se criamos crenças, também podemos criar novas.

Você foi premiada com Shell e APTR de Melhor Atriz, e a peça tem quase 40 indicações. O que significa esse reconhecimento?

Vera Holtz: Um prêmio é sempre coletivo. Mesmo que o nome seja “Vera Holtz”, há um autor, um adaptador, uma equipe técnica, produtores… Todos fazem o espetáculo acontecer. Eu levo essa galera comigo. E sempre dedico meus prêmios ao Antônio Abujamra, que me ensinou muito.

Nos últimos anos você se afastou do audiovisual para focar no teatro. Por quê?

Vera Holtz: Minha vida é uma sucessão caótica de acasos, ainda bem que não é programada. As coisas foram acontecendo naturalmente. Assim como sempre estive no auditório, agora estou no palco. Eu adoro essa ideia do caos.

Ficções tem quase 400 apresentações e mais de 160 mil espectadores. Qual o diferencial desse sucesso

Vera Holtz: O retorno do público. Cada cidade nos ensinou por que o espetáculo provoca reflexões profundas sobre a condição humana. A pessoa tem uma hora e meia para pensar em si como Homo sapiens criando uma humanidade extraordinária. Cada um tem seus insights, esse é o diferencial.

Alguma reação do público te emocionou mais?

Vera Holtz: Foram 300 apresentações, vários estados, Portugal… aprendemos muito, e isso emociona. Teatro não é fácil. É um espaço sagrado para refletir. Não tem fake news: é você e o público por 1h30, no imaginário, pensando a humanidade. O espetáculo provoca, morde e assopra. E cada sessão é única.

Como você enxerga hoje a teledramaturgia e a onda de remakes na Globo?

Vera Holtz: É uma tendência global. O Diabo Veste Prada 2 acabou de estrear, por exemplo. A Globo está alinhada com esse movimento. Parece que vão fazer um remake de Avenida Brasil. Viajei recentemente e fui reconhecida em vários lugares como Mamãe Lucinda, o alcance da teledramaturgia brasileira é extraordinário. Espero que continue assim.

Para encerrar: o que tem te motivado na arte hoje?

Vera Holtz: Eu não sei viver longe disso. Não sei viver sem exposição, dança, artes visuais. Tudo é criação, até o que não intervenho: uma flor, uma fruta que cai, um pássaro na janela. A natureza traz sua arte, e o ser humano cria imagens, dança, cinema, tudo. Gosto de estar perto das pessoas que transformam a realidade e enxergam o mundo de formas diversas.

Serviço ‘Ficções’:

Temporada | de 10 de outubro a 21 de dezembro de 2025
Horário | sextas e sábados, às 20h, e domingos, às 17h
Local | Teatro FAAP
Endereço | Rua Alagoas, 903 – Higienópolis

Vera Holtz em cena em ‘Ficções’ (Foto: Ale Catan)

Vera Holtz em cena em ‘Ficções’ (Foto: Ale Catan)