O maestro Leonardo García Alarcón não precisa de muito tempo para responder à pergunta sobre a importância do compositor Claudio Monteverdi (1567-1643). Do outro lado da linha, a resposta soa imediata. “Ele é o Michelangelo da música”, explica, logo completando: “Ele revolucionou os parâmetros e as técnicas da história da música”. E fez isso com o Orfeo, ópera que Alarcón interpreta nesta segunda-feira (13), com os dois grupos do qual é diretor, a Cappella Mediterranea e o Coro de Câmara de Namur, na Sala São Paulo, encerrando a temporada deste ano da Cultura Artística na capital paulista.

Orfeo não é a primeira ópera da história, mas é a obra que a moldou de maneira quase definitiva. O gênero nasceu em pleno Renascimento, quando um grupo de intelectuais e músicos resolveu pensar em uma forma de combinar texto e música, dando origem, em fevereiro de 1597, a Dafne, de Jacopo Peri. Dez anos depois, no entanto, Monteverdi levou a novo patamar a relação entre texto e música – e o drama que pode nascer dela. “O teatro de Monteverdi é intimista, quase shakespeariano, profundo, que leva a plateia a uma catarse incrível”, diz Alarcón. “É um músico teatral por excelência, e é preciso lembrar que, um pouco mais tarde, estará envolvido com suas obras nas criações dos primeiros teatros públicos, abertos ao povo, em Veneza. Eu diria que, de Monteverdi a Puccini, ainda que tenham havido grandes compositores, capazes de refinar o gênero, quase não houve nenhuma outra revolução.”

Orfeo será apresentado na segunda-feira; na terça-feira, o programa traz Il Diluvio Universale, de Michelangelo Falvetti (1642-1692). A obra é outra, mas de certa forma se mantém a investigação sobre as origens do teatro musical. “Foi em 2001 que um colega músico me emprestou a partitura. Resolvi dar uma olhada e não conseguia parar. A cada página havia algo de novo, sempre com enorme originalidade”, conta Alarcón, que não apenas inseriu o oratório no repertório da Cappella como o gravou, em um registro elogiado pela crítica internacional e tido como responsável pelo resgate de uma obra que, até então, permanecia praticamente desconhecida do público.

Il Diluvio Universale narra o episódio bíblico de Noé, que é convocado por Deus a salvar os animais em uma arca antes que um dilúvio inunde a Terra e limpe dela os pecados dos homens. “O público com certeza vai se impressionar com a riqueza de colorido da peça. Há achados incríveis. A figura da morte, por exemplo, que dança uma tarantella. O modo como a música representa a figura de Deus ou simula a justiça divina interrompendo a ação; a música que simboliza a água. Ou o coro que se afoga, pedindo em desespero uma ajuda que não virá. Quando se soma o fato de que essa é uma história conhecida com os recursos teatrais da partitura, a obra fala de forma muito direta com o público. É como se viajássemos no tempo, por meio da sonoridade, e ainda assim ouvíssemos algo que fala também de nós.”

Nascido na Argentina, Alarcón mudou-se para a Europa no fim dos anos 1990, onde se especializou na interpretação da música antiga. Estabeleceu-se em Portugal, onde logo criou o grupo Cappella Mediterranea, com o objetivo de pesquisar e interpretar o repertório antigo criado na Península Ibérica, sem perder de vista o diálogo com a música do oriente e da África. Esse tipo de diálogo, ele diz, o interessa profundamente. Está representado na obra de Falvetti, que utiliza, como ele diz, técnicas orientais, recriando um mundo sonoro entre o ocidente e o oriente. Mas permanece vivo mesmo quando o grupo se dedica a pilares mais estabelecidos do repertório, como é o caso de Orfeo. “Há algo interessante em trazer Monteverdi à América Latina. A forte imigração italiana faz com que haja uma afinidade com essa música, com essa poesia. E não só isso. Qualquer música popular argentina ou brasileira tem, na sua estrutura de acompanhamento, na união de instrumento e voz, uma dívida com a música barroca. O charango argentino, as harpas paraguaias, diversos instrumentos dialogam com os instrumentos usados no período”, diz Alarcón, que participa, antes do concerto, às 20 horas, de uma conversa com o público, mediada pelo jornalista Irineu Franco Perpetuo.