03/09/2019 - 16:25
Gary Kelly e Bruce Munro tiveram sorte: sobreviveram à epidemia que levou a Escócia ao topo da União Europeia (UE) na taxa de mortes por overdoses.
“Morreria se saísse cedo demais daqui”, explica à AFP Gary, de 46 anos, pedreiro e pai de dois filhos, na clínica de Glasgow financiada pelas autoridades locais, onde trata de seu vício em álcool, cocaína e opioides.
Munro, de 45, pai de dois meninos, ficou viciado em heroína enquanto cumpria dez anos de prisão por roubo a mão armada. Sem casa quando foi libertado e dependente de outras drogas, conta que esteve várias vezes a ponto de sofrer uma overdose e conhece uma dezena de pessoas que morreram por este motivo no ano passado.
“Eles chegaram ao fundo, pediram ajuda, mas não chegou a tempo”, diz no salão do centro de desintoxicação.
Após anos de austeridade e cortes de orçamentos sociais, somados aos preços baixos dos novos coquetéis de drogas, Munro acredita que o pior ainda está por vir. “Ainda vai haver muitas mortes”, alerta.
– Pior da Europa –
Glasgow, a maior cidade da Escócia, é o epicentro de uma crise que no ano passado deixou 1.187 mortos na região por motivos ligados às drogas, em uma nação de 5,4 milhões de habitantes. As cifras para Inglaterra e País de Gales publicadas neste mês batem recordes.
Na Escócia, que tem uma das piores estatísticas na Europa, as mortes mais que duplicaram em quatro anos e rivalizam com as dos Estados Unidos, onde o presidente Donald Trump declarou a crise dos opioides uma emergência de saúde pública.
A crise escocesa saltou ao cenário internacional em 1996 com o filme “Trainspotting – Sem Limites”, de Danny Boyle, ambientado em Edimburgo. Mais de 20 anos depois, as mortes por overdose estão relacionadas a esta “geração Trainspotting”, que começou a consumir heroína nas décadas de 1980 e 1990.
“Estão em tão mal estado de saúde que se continuarem consumindo, boa parte terminará morrendo por isso”, comenta David Brockett, diretor da Phoenix Futures, organização caritativa que administra a clínica.
– ‘Consomem qualquer coisa’ –
Segundo as estatísticas anuais publicadas em julho, a grande maioria das mortes se deveu ao consumo de várias substâncias. A heroína e os opioides sintéticos como a metadona, a codeína e a oxicodona estiveram presentes em 86% das mortes em 2018.
As benzodiazepinas, chamadas de “valium das ruas”, ou benzos, vendidas por 15 centavos a pílula, foram encontradas em dois terços dos casos.
Isto sem contar a cocaína, que os consumidores de Glasgow injetam em pequenas quantidades para um efeito imediato, agravando os riscos de overdose letal e do uso de seringas contaminadas.
As mortes vinculadas à cocaína aumentaram 658% desde 2008, mais que qualquer outra droga, em paralelo com a pior epidemia de aids em décadas, com 156 novos casos desde 2015.
Jim Thomson, ex-dependente químico e funcionário da ONG Simon Community Scotland, explica que os adictos misturam metadona, heroína, benzos e cocaína.
“Consomem qualquer coisa para não sentir mais nada”, disse, enquanto distribui seringas esterilizadas a dependentes químicos moradores de rua.
– Enfoque radical –
A austeridade aplicada pelos sucessivos governos conservadores é frequentemente criticada.
David Brockett destaca que o número de camas nos centros de desintoxicação diminuiu nos últimos anos, enquanto o programa de seis meses da Phoenix Futures foi reduzido a 13 semanas diante da falta de dinheiro.
Aturdido pelas últimas estatísticas, o governo escocês, que controla a saúde e os serviços sociais, criou um grupo de trabalho para encontrar soluções.
Autoridades de Glasgow vão abrir um centro de tratamento pioneiro, com a administração de heroína de qualidade médica sob controle rigoroso. “Este tipo de tratamento corajoso e inovador é indispensável para reduzir o número de mortes”, explica Mhairi Hunter, conselheira de saúde.
Outros querem ir além. “É necessário descriminalizar o uso da droga”, garante Roseanne McLuskie, diretora da Addaction, uma ONG que ajuda cerca de 600 dependentes em Glasgow em questões que vão da moradia ao tratamento de saúde mental.
Para sua colega Luise Stewart, “às vezes temos a impressão de seguir adiante em uma batalha já perdida. Mas tem tanta gente que segue em frente em Glasgow. E para cada história dolorosa, também há uma positiva”.