O santuário situado na igreja evangélica que Eleonor Teresa Sousa frequenta no Rio de Janeiro a faz se sentir mais perto de Deus, e cada vez mais distante do calor tropical e do pecado presente em uma cidade que está em contagem regressiva para o Carnaval.

Aos 75 anos, Eleonor orgulhosamente se intitula parte dos cristãos conservadores do país que condenam o samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira, campeão do Carnaval em 2019.

A escola desfilará o novo enredo no próximo domingo (23), na primeira das duas noites do Grupo Especial, que ao todo conta com 13 agremiações que buscam ser a vencedora.

Para os fundamentalistas, no entanto, o pior será a história que os grupos purpurinados irão mostrar.

Em um país extremamente polarizado, a Mangueira planeja um desfile com uma mensagem impactante: ela tratá Jesus de volta à Terra, onde ele seria morador de uma favela, e teria características de uma mulher negra com ascendência indígena, divulgando sua mensagem de tolerância.

O tema do samba-enredo causou polêmica em um país governado por um presidente fortemente apoiado pela comunidade cristã conservadora, trazendo a discussão à tona desde que ele tomou posse no último ano.

Pertencente a uma das maiores igrejas evangélicas do país, a Universal do Reino de Deus – que afirma ter oito milhões de fiéis espalhados por todo país -, Eleonor diz se sentir “completamente ofendida”.

“Esse não é o Jesus da Bíblia. Sinceramente, estão blasfemando Jesus”, insiste.

Mais de 100 mil pessoas assinaram uma petição on-line, acusando a Mangueira de “profanar a figura do Homem-Deus”, lançada por uma associação católica conservadora, chamada Instituto Plinio Corrêa de Oliveira.

Versões atualizadas de Jesus não são novidade no Brasil. No último ano, a comédia “A Primeira Tentação de Cristo”, em que ele é apresentado como sendo gay, gerou controvérsia ao ser lançada pela Netflix.

– ‘Grito contra o fascismo’ –

As pessoas tendem a enxergar o assunto de uma forma diferente na comunidade da Mangueira, onde fica a sede da escola de samba. Do morro da favela, o Cristo aparece de braços abertos para a cidade, mas dali parece bem distante.

“Este é um grito de liberdade que a Mangueira está dando, contra esse fascismo que está no poder do nosso país”, defende Marcus Portugal Feital, de 61 anos, que faz parte da Ala da Comunidade da Mangueira.

“É o Cristo verdadeiro que protege os desprotegidos, os abandonados, os negros que vivem nos guetos. É tudo o que Bolsonaro e companhia não fazem”, ressalta Feital, do lado de fora de um ensaio da escola, onde centenas de pessoas dançavam e se divertiam ao som da percussão.

“Se Jesus Cristo viesse ao mundo hoje, se nascesse pobre, numa favela, ele ia ser massacrado”, acrescenta Consuelo Cavalcante, de 58, também integrante da Ala da Comunidade.

O samba-enredo da escola é um protesto velado ao presidente, contendo frases como: “(…) Nem Messias de arma na mão”, por causa do nome do meio de Jair Bolsonaro, que é um defensor do porte de armas.

– Carnaval e política –

Não é de hoje a disputa que existe entre o Carnaval e os valores tradicionais cristãos. No Brasil de hoje, com Bolsonaro no poder, o carnaval se tornou, porém, um território particularmente politizado.

A Estação Primeira de Mangueira foi a vencedora no último ano, com um samba-enredo no qual homenageava a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), assassinada em 2018.

Outras escolas também escolheram temas políticos neste ano, incluindo a defesa do meio ambiente e dos indígenas, negros e dos direitos das mulheres.

Aumentando a tensão na Cidade Maravilhosa, o prefeito Marcelo Crivella, um pastor evangélico, eliminou a verba anual de R$ 28 milhões destinada ao Grupo Especial.

A política sempre fez parte do Carnaval, desde a abolição da escravatura, no século XIX, segundo o historiador Luiz Antonio Simas.

“Têm momentos em que isso fica mais explícito. Acho que este é o momento em que isso está mais forte”, afirma Simas.

“Com a ascensão de um governo reacionário e ultraconservador, aliado aos fundamentalistas cristãos, acaba gerando uma reação dos setores do Carnaval”, finaliza.