“Degenerativa é uma palavra que tira você para dançar – uma dança de medo. Essa palavra me pinçou a alma. Me tirou o chão” Nirlando Beirão, autor

Um cachecol enrolado sobre outro cachecol, fisionomia construída intencionalmente triste, lá vai o moço mineiro de vinte anos de idade caminhando pelo centro de São Paulo, no rigoroso inverno de 1968 – rigoroso no clima, rigoroso na ditadura que esmagava o País, rigoroso em fazer cumprir um vendaval de mudanças nos costumes e na cultura em todo o mundo. Nas mãos, o moço leva, é claro, um livro do filósofo francês Jean-Paul Sarte – era moda; e no peito carrega paixões não correspondidas, nada grave, são paixões inventadas para não serem correspondidas mesmo – tanto que uma dessas amadas só poderia ser tocada se ele deslizasse as mãos sobre as telas dos cinemas Normandie ou Bretagne: tratava-se da atriz Anna Karina, no filme “Vivre sa vie”, de Jean-Luc Godard. O moço mineiro assistiu dezenove vezes a esse filme. No trapézio de sua alma uma história familiar balança ao fundo, e ele sabe disso, sabe que um dia irá ter de contá-la para alívio próprio. O que aos vinte anos o jornalista e escritor Nirlando Beirão não sabia, porque a ninguém é dado o dom de prever décadas à frente, é que ele seria o dono, trágica e tristemente, da definitiva definição de uma doença. Machado de Assis é insuperável ao retratar na literatura a psique feminina de sua personagem Capitu: “olhos de ressaca”. Nirlando Beirão, em seu décimo primeiro livro que está sendo lançado e se intitula “Meus começos e meu fim” (Companhia das Letras), cristalizou em palavras a doença degenerativa esclerose lateral amiotrófica, na qual os neurônios motores vão paulatinamente paralisando todo o corpo, à exceção dos olhos, mas a enfermo mantém-se lúcido. Sua sigla é ELA, não tem tratamento nem cura. É fatal. Nirlando arrasou: “(…) tenho o duvidoso privilégio de chorar a minha própria morte”.

O avô padre

Com licença de usar uma expressão que nomeia a mais célebre obra de Fernando Sabino, o nosso personagem tinha um “encontro marcado” com o contar, como o faz agora em “Meus começos e meu fim”, a história que marcou a sua infância, comentada pelos entes familiares adultos “entre sussurros e culpas”. Nirlando cria ótima imagem: “uma história eivada de tabus e silêncios”. E complementa: “o livro não é e nem pretende ser uma autobiografia nos moldes tradicionais”. Que história é essa? É o amor de seu avô por sua avó. Qual era o problema? Por que os sussurros? Porque o avô… era padre. Padre Beirão, colega de seminário, na cidade portuguesa de Viseu, daquele que se tornaria um dos maiores ditadores do país: António de Oliveira Salazar. Padre Beirão e sua esposa, avô e avó de Nirlando, emigraram para o Brasil e desembarcaram em Minas Gerais em 1915.

JORNALISTA Nirlando na favela Heliópolis, em São Paulo, em reportagem para ISTOÉ/Senhor, em 1988: “as pessoas simples têm de ser notícia” (Crédito:Divulgação)

O livro estava começado quando em 2016 veio o diagnóstico de ELA. Ao recebê-lo, escreve Nirlando, “a consciência piscou”. Mais: “degenerativa é uma palavra que tira você para dançar – uma dança de medo”. Como não incluir a sua enfermidade no livro que já estava escrevendo? “Pensei em misturar a história antiga com minha condição atual. Tinha dúvidas se ia rolar”, explica ele. Pois é, rolou, e rolou com maestria, a mesma maestria que fez de Nirlando um dos mais consagrados textos do jornalismo brasileiro. No livro, no entanto, o texto de Nirlando é Nirlando elevado a Beirãonésima potência. É Marcel Proust sem choramingo. Nirlando é Proust apressado – e nem poderia ser diferente, desculpem a melancolia, mas é o autor mesmo quem diz que tem pressa. Há, porém, passagens engraçadas, tristemente engraçadas, e tal sentimento ambíguo é possível, já dizia Tom Jobim: “há textos que riem e choram aos mesmo tempo”.

Nirlando é Marcel Proust sem choramingo. Nirlando é Proust apressado. Desculpem a melancolia, mas é ele próprio quem diz

Vamos a uma passagem: Nirlando mora no bairro de Higienópolis, um dos mais nobres paulistanos, e nele o cadeirante Zé Cláudio é amigo de todos devido ao seu alto astral. Zé Cláudio tem uma cadeira com guarda-chuva acoplado, toda incrementada, e vende balas nos semáforos. Nirlando e ele conversavam sempre de forma camarada. Amigos! Irmãos! Zé Cláudio é santista, Nirlando, corintiano, e ambos se provocavam futebolisticamente. Quando Nirlando teve de começar a sair de casa em cadeira de rodas, Zé Cláudio brincava: “bem vindo ao clube”. Nirlando o amava e o ama ainda mais.

O livro é fado

O desfecho do amor proibido do avó padre, isso eu deixo, é claro, para o leitor – quem conta fim de livro tem caráter duvidoso. Dou a garantia de que vale a pena viajar ao passado com o autor, e sabe disso quem o conhece do jornalismo: Nirlando trabalhou nas principais redações do País, entre elas as revistas “Senhor”, “ISTOÉ/Senhor” e “Status”, publicadas pela Editora Três. Aliás, quando chegou a São Paulo em 1968, já tinha ele a experiência de quatro anos no jornal “Última Hora”, na sucursal de Belo Horizonte.

Livros, são muitos e diversos, e um dos principais é “Meus 405 dias ao lado de Ayrton Senna”, em parceria com Adriane Galisteu. Como jornalista, ele ainda não conseguiu dar a notícia que tanto deseja: “acabou A Voz do Brasil”. Como escritor, em seu livro que desembarca nas livrarias, o autor arrola alguns arrependimentos – também não os conto para não desmanchar o prazer do leitor. Mas assinalo duas coisas: a primeira é que espero, de coração, que o neto do padre Beirão tenha devorado muitos embutidos, como disse, certo dia, que gostaria de devorá-los. A segunda questão é que, vez por outra, ele colocava na cabeça intrincadas indagações, e numa delas remeteu-se até ao “O Alienista”, de Machado de Assis: Nirla, como é chamado pelos amigos, ficou matutando qual Brasil é real e qual Brasil é enganoso, qual Brasil é sério e qual Brasil não consegue sê-lo.

Se chegou ou não à conclusão, juro que isso, machadianamente, ele não contou a ninguém. Voltando aos arrependimentos, quem nos mostra Portugal da forma que Nirlando descortina o país não tem de se arrepender de nada. Sua missão era escrever o atual livro e isso ele o fez. Livro que, aliás, não é livro.

Não é texto. É fado.

Como Machado de Assis, Nirlando se colocou a questão: qual Brasil é sério e qual não é? Se ele descobriu, não contou a ninguém