Walter Casagrande Júnior, aos 59 anos, ainda é venerado como ídolo do Corinthians, onde ganhou títulos e integrou a chamada Democracia Corintiana, movimento no qual jogadores liderados por ele e Sócrates se posicionaram por um comportamento mais politizado dos atletas. O “Casão” disputou a Copa de 1986 e jogou no Porto, de Portugal, e no Torino, da Itália, com sucesso. Como comentarista, passou 25 anos na Globo, com muita popularidade, até deixar a emissora em junho. Passou a colunista do UOL e está no Catar, na sétima Copa como comentarista. Foi de lá que conversou com IstoÉ sobre futebol, política e sua notória e vitoriosa luta contra o uso de drogas. Na Copa, criticou os pentacampeões mundiais Ronaldo, Kaká, Cafu e Roberto Carlos, que assistiram aos jogos do Brasil das tribunas dos estádios, “ao lado dos opressores do Catar”. Casagrande não poupa ninguém: os campeões do penta, o jornalista Tiago Leifert, que o atacou no bojo das respostas revoltadas dos ex-atletas, Tite, Neymar, e, principalmente, Jair Bolsonaro.

O Catar, para dizer o mínimo, não colhe muitos elogios entre os visitantes. Você vai completar um mês em Doha. O que acha do país?
Sou contra a Copa do Catar. Sou contra a Copa num país que não respeita os direitos humanos, que trata a mulher como um ser inferior e é altamente homofóbico. O futebol, e o esporte em geral, é um meio fortíssimo de inclusão. Então não pode ser disputado num país que não respeita as diferenças. As mulheres realmente não têm valor aqui. É uma coisa muito feia, incomoda. Nós temos diversos problemas no Brasil, mas quando você está num país em que o preconceito é oficial, faz parte do dia a dia, é uma coisa chocante. Aqui eles não têm nem o direito de lutar contra. No Brasil, pelo menos a gente pode ir contra tudo isso.

E a Copa, dentro dos estádios, está indo bem?
Não tem clima nenhum de Copa do Mundo. Nem dentro do estádio. Na hora dos gols, os caras colocam uma música altíssima, você não ouve a torcida comemorar o gol. O gol é o momento que liga a energia do campo com a energia da arquibancada, do jogador com o torcedor, é uma troca. E os caras interrompem isso. Não deixam isso acontecer. Falta de conhecimento do que é realmente uma partida de futebol. Os estádios são maravilhosos, mas como foram em todas as Copas. Cada uma em seu estilo. Em todas as Copas que eu fui, os estádios eram lindos. Fora isso, não tem clima de Copa, a música alta é antes do jogo, no intervalo, na hora do gol… Para quem gosta mesmo de futebol é um tormento, uma chatice…

E nem deve ser um bom rock tocando, não?
É música eletrônica! Eu odeio! Queria uma Copa assim na Inglaterra, para ficar escutando Beatles, Rolling Stones, The Who… Aqui sou obrigado a ouvir eletrônica o tempo todo.

Se Sócrates jogasse hoje, você acha que, com o perfil ativista que sempre demonstrou, ele aceitaria disputar a Copa do Mundo no Catar?
Ele não viria. Eu também não viria. Vim para cá porque trabalho como jornalista há mais de 26 anos. Queria participar da Copa, é a minha sétima. Eu vim para trabalhar. Se fosse jogador de futebol, não iria defender a camisa do meu país em um lugar que não respeita as diferenças. Eu tenho certeza que isso seria um problema para muitos daquela turma dos anos 1980. Mas, pensando melhor, nós poderíamos até vir, eu, Sócrates e outros jogadores, mas para fazer protesto no campo, mesmo com a Fifa proibindo.

Você foi obrigado a dividir seu tempo nesses dias entre analisar os jogos da Copa e rebater críticas pesadas de ex-jogadores e de colegas do jornalismo esportivo. Como lidar com isso?
Aí é que está. Acho que essa palavra, “crítica”, ela não cabe no meu caso. Eu não sou criticado, eu sou atacado. É diferente. Ninguém fala “Eu não concordo com o que essa cara está falando!”. Eles tentam me desqualificar e me desmerecer, atacando o meu passado com o uso de drogas. Atacam a minha doença, a minha dependência química. Eu não sou um cara de responder, não entro em guerra de rede social. Esses caras já me atacaram cem mil vezes. Só que dessa vez achei covarde esse ataque em grupo. Os pentacampeões, mais alguns jogadores e alguns jornalistas esportivos, como foi o caso do Tiago Leifert. Eles se uniram para um ataque coletivo ao trabalho de uma pessoa. O que eu falo, o que eu escrevo, isso é o meu trabalho. Eu estou aqui para escrever sobre a Copa, sobre comportamento, sobre política, sobre o que eu quiser. Tenho liberdade, escrevo o que eu quero. Estou aqui para trabalhar, presto atenção em tudo. Já disse muitas vezes, e vou repetir, que para mim o futebol faz parte de uma sociedade. Então política, governo Bolsonaro, vitória do Lula, desmatamento, povos indígenas, racismo, tudo para mim está dentro do mesmo pacote. Eu não vejo o futebol apenas como 22 caras correndo atrás de uma bola rolando.

O gatilho dessa polêmica foi a participação dos campeões de 2002, não?
Os ex-jogadores da Argentina ficam nas arquibancadas, junto com os torcedores. E os pentacampeões sentados nas tribunas de luxo, junto com os diretores da Fifa e com os opressores do Catar. E recebendo. Recebendo! Foram pagos para fazer isso. Aí o Kaká vem e diz que estavam trabalhando. Alguém oferece uma grana para fazer uma coisa, você pode aceitar ou não. Se aceita, é porque está concordando com aquilo. Sabe por que eles reagiram? Porque eu falei a verdade e toquei na ferida. Fui direto ao ponto. Eles ficam revoltados porque se acham intocáveis, acham que ninguém pode falar mal de quem já foi campeão do mundo. Não pode criticar Ronaldo, Roberto Carlos, Cafu, Kaká… Kaká é o pior deles, porque se esconde atrás de uma religião e demonstrou claramente ser preconceituoso, inclusive com o próprio Ronaldo, ao dizer que as pessoas no Brasil acham que o Ronaldo é só mais um gordo andando na rua. Olha o que um religioso fala. Eu comprei essa briga inicialmente sozinho, porque não tolero turma atacando uma pessoa só. É uma covardia. E fiquei muito feliz que, aos poucos, pessoas importantes foram entrando do meu lado, pessoas dignas, intelectuais, jornalistas, atores, escritores. E eles não entraram nessa porque o Casagrande é legal ou é bonito, mas porque concordam com a minha opinião.

Falando em polêmicas nas redes, o quanto elas atrapalham o futebol de Neymar?
O Neymar é um grande jogador, um craque. Mas, na minha opinião, ele não está na primeira prateleira mundial. A primeira prateleira é Mbappé, Messi, Modric, Harry Kane… Essa é a primeira, e o Neymar não está lá, porque não foi bem em nenhuma Copa. Nas três que jogou, contra a Croácia foi o único gol importante que ele fez. Pesa muito o comportamento e as escolhas que ele faz. O futebol não é um mundo paralelo, está dentro de uma sociedade. Neymar apoia um governo nazista. Não sou eu que digo que é nazista, é o pesquisador Michel Gherman. Neymar apoia um sujeito que debochou das famílias que perderam entes queridos na pandemia, que imitou gente que morreu com falta de oxigênio, que apoia desmatamento da Amazônia, garimpo ilegal e assassinato dos povos indígenas. Um cara que várias vezes demonstrou ser um machista agressor de mulheres, principalmente jornalistas, um cara com diversas falas racistas e homofóbicas… E você vai e oferece um gol em homenagem a ele? O que o Neymar quer? Que o povo brasileiro inteiro aplauda? Quem aplaude Neymar são fascistas e nazistas como Jair Bolsonaro. O Neymar segue um embalo familiar, do pai dele. Não estou isentando o Neymar da responsabilidade, só digo que tem influência do pai dele nas escolhas, porque nunca assumiu responsabilidade, é um cara infantil. Ele sofre da Síndrome de Peter Pan, se recusa a amadurecer.

Quem assume no lugar de Tite? Um estrangeiro? Fala-se em Jorge Jesus, Carlo Ancelotti, e Abel Ferreira.
A escolha de um treinador não tem que contemplar só o trabalho do cara, precisa também da análise do caráter. O Jorge Jesus já demonstrou muitas vezes ter um caráter no mínimo duvidoso. No próprio Flamengo, ele foi de uma falta de ética e de dignidade enorme. O Abel Ferreira é o melhor treinador hoje no Brasil, Para mim, colocaria o Abel e nem pensaria duas vezes.

É difícil ser um comentarista crítico a um torneio quando você trabalha para a emissora que detém os direitos de transmissão do evento e fatura muito com isso?
Eu trabalhei 25 anos na TV Globo, nunca impuseram nada e eu sempre critiquei. Fui contra a volta do futebol na época da pandemia, mesmo com a Globo tendo os direitos de transmissão de vários campeonatos. Sempre critiquei a seleção quando ela estava mal. Na última Copa foi um lixo. e há quatro anos que estou falando que a seleção não vai a lugar nenhum. Desde 2019 estou falando que o Tite não tem variações, que não tem um bom time, que só ganha dessas seleções sul-americanas. Algumas pessoas acham fantástico o time ficar em primeiro lugar das Eliminatórias. Falam bobagens. Só seis derrotas em 80 jogos? Das seis derrotas, três foram para a Argentina, uma delas final da Copa América. Duas foram em Copa do Mundo, contra Bélgica e contra Camarões. E uma em amistoso com o Peru. E as 80 vitórias? Dez vezes contra Peru, não sei quantas contra Equador, Bolívia, Paraguai, El Salvador, Gana, só contra esses times aí. Se não começar a fazer jogos com seleções boas, na próxima Copa vai cair novamente quando cruzar com um time europeu de médio para grande.

Lula irá assumir a Presidência num cenário bem diferente do que existia na primeira vez eleito. O que você espera?
As melhoras vão ficar nítidas logo, porque o Bolsonaro destruiu tudo. A Cultura, a Educação e a Saúde terão uma melhora imediata. Na proteção da Amazônia também. Os povos indígenas vão ganhar espaço rapidamente. O que vai levar mais tempo é retomar os princípios e os valores da nossa sociedade.

Nova York acaba de aprovar a internação involuntária de usuários de drogas quando pedida pelas famílias. Você já viveu essa situação, não?
A minha vida foi salva pela minha família, que me internou involuntariamente. Você vai chegar na Cracolândia e perguntar quem quer ser internado? Ninguém vai responder que quer. Se você está totalmente dominado, dependente da droga, não fica meia hora sem fumar uma pedra. A internação involuntária é para a pessoa que não tem mais poder de decidir. Quer salvar a vida, tem que internar, concordo plenamente. Uma palestra ou um debate sobre isso em que eu esteja me faz bem. Além de passar minha vivência, conheço muito bem o tratamento, principalmente na parte psicológica e comportamental. Para mim, faz muito bem reviver todo esse processo falando, falando e falando.