Ney Matogrosso acordou outro dia no meio da noite. Sonhou com um novo show. Ele se levantou, tomou notas, fez uma seleção de possíveis músicas. Mas não tem ideia de quando fará esse novo espetáculo. Com o atual, já está na estrada há mais de três anos. Tem viajado muito para levar Atento aos Sinais a todo o Brasil. Nesta quinta, 5, estará no Recife. Ney sente que precisa dar uma parada. “Estou há 44 anos nesse ritmo. Parar um pouco vai fazer bem. Vou refletir – sobre a vida, o que venho fazendo.” Mas essa parada não deve ser imediata. Além do show no Recife, Ney estreia novo filme nesta quinta. Ralé marca sua terceira parceria com a diretora (guerreira) Helena Ignez.

“Conheço a Helena há muitos anos e tenho o maior respeito por ela. Somos ambos libertários. Sempre acreditei na liberdade individual, e isso me levou a ser o artista que sou, desde os tempos da ditadura. Continuo a praticar minha liberdade, mas o País encaretou muito. Não é só essa coisa atual, esse apoio absurdo a figuras como o deputado Jair Bolsonaro. Esse conservadorismo crescente vem de alguns anos. Por um lado, acho bom. Clarifica tudo. Se todo mundo se posicionar, vamos ter uma definição se o Brasil é (virou) de direita.” Ralé baseia-se em textos de Gorki, mas não é bem uma adaptação. Helena Ignez, que foi casada com Glauber Rocha e Rogério Sganzerla, até pensou em adaptar, mas se deu conta de que a ralé de Gorki, no começo do século passado, mudou de figura. “Hoje, a ralé somos nós, os artistas”, diz a diretora.

Com Sganzerla, Helena descobriu e se identificou com o cinema marginal. “Somos transgressores”, avalia Ney. E depois de Luz nas Trevas, a retomada do Bandido da Luz Vermelha e do média O Poder dos Afetos, ele faz um personagem fora de esquadro, como Helena gosta. “O Barão tem a minha cara. Converso muito com Helena, conto coisas, até íntimas, que ela coloca nos personagens. Então, quando ela me pede para fazer alguma coisa que parece louca diante da câmera, eu vou lá e faço, sem problema, porque já fiz na vida.” A cena com José Celso Martinez Corrêa, outro ícone da transgressão, é exemplar. “Já fiz aquilo (limpar dejetos) com amigos soropositivos. Não teve mistério algum.” No filme, Barão tem uma seita que faz rituais como os do Santo Daime. Barão tem uma relação muito afetiva com o filho, mesmo que o pai seja gay e esteja se casando com outro homem e o garoto seja careta – quer ser militar.

“O Barão está sempre abraçando o filho, fazendo carinho. Tem gente que se incomoda. A gente faz como provocação, para lembrar aquele pai que foi espancado no interior de São Paulo. Ele estava abraçado ao filho e os caras meteram porrada nele, achando que era gay.” Tudo o que o Barão faz vem do Ney? “Ah, não. Eu nunca ia me casar com um homem.” E ia casar com quem? Com mulher? “Eu não quero é casar. Prefiro viver a vida livre do meu jeito.” É o jeito dele, está na sua arte, na sua maneira de ser, que os shows e filmes refletem. Ele conta que nunca foi um grande vendedor de discos. “Vendia lá meus 300/400 mil, o que não é mau. As gravadoras não ficavam me cobrando o milhão (de discos ou CDs). Sempre ganhei mais dinheiro com shows.” E os shows sempre colocaram no palco no Ney performático, que veio do teatro. Alguma influência do Queen, que também estreia nesta quinta 5, o documentário A Night in Bohemia. “Não teve influência não, nem do Kiss. O Secos e Molhados veio da tradição do teatro brasileiro.”

Gosta de fazer cinema. “Muito.” Depois de Ralé, fez Curva de Rio Sujo, com direção de Felipe Bragança. “É um faroeste, me chamaram para fazer o capanga de Cauã Reymond, mas era para o pai dele. Não gostei muito. (risos) Queria ser capanga do Cauã.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.