A morte do pianista Nelson Freire nesse momento comove não apenas pelo desaparecimento de um dos grandes nomes da música erudita mundial. É também uma lembrança dolorosa de que o País, em época de guerra civil, ainda é capaz de produzir gênios da raça.

O artista era um representante do Brasil da contenção, da discrição. Quem assistiu ao excelente documentário “Nelson Freire” (2003), de João Moreira Salles, viu um artista circunspecto que extraía a potência de suas performances de seu silêncio e sua intimidade.

Por definição, o ofício de pianista exige disciplina, foco e incontáveis horas de prática. Não é possível virar um virtuoso sem muito suor, longe das câmeras.  Esse trabalho solitário combinava com a personalidade de Freire, que refletia não apenas a exuberância cosmopolita do Rio (onde morava), mas também a antiga cultura do interior do País (nasceu em Boa Esperança, em Minas Gerais), que valorizava a educação musical nas casas de família e gerou grandes talentos do piano e também do violão.

Tudo isso desapareceu com a urbanização e com uma espécie de mudança de caráter do País, que nos últimos anos ganhou ares de tragédia.

O cinismo hedonista suplantou a genialidade contida. O Brasil atual, em sintonia com a explosão das redes sociais e da comunicação digital, não valoriza a virtude low profile, mas a ostentação e a estridência popularesca.

A própria música erudita parece deslocada em um momento em que a arte engajada e o ativismo político e identitário abafam a voz comedida e insultam o recato. O pianista é um símbolo da dignidade perdida. Representa o Brasil que deu certo, mas não se reconhece mais.