“Essa menina bate de um jeito diferente na bola. Acho que vai ser jogadora”, dizia há alguns anos Fabiano Linhares, jornalista que cobriu esportes. “Isso é coisa de pai babão”, rebatia a mulher, Karina Pereira, com algum humor. Só que a menina foi crescendo e jogando cada vez melhor. Primeiro virou mascote da turma do irmão, Vinícius, de doze anos, nas peladas na quadra do condomínio onde vive a família, em Florianópolis (SC). Depois passou a jogar em times infantis da cidade, empilhando gols. Até que, na tarde do dia 25 do mês passado, fez história.

Entre fintas e lacinhos

Meia-atacante do sub-10 masculino do Avaí, Natália Pereira domina quase todos os fundamentos da bola: drible, domínio, visão de jogo, chute. Por ser ainda baixa e miúda, deixa a desejar no cabeceio

Idade: 9 anos
Altura: 1,33 cm
Peso 30 kg

Meta: ser atacante em um time de futebol feminino e jogar na Seleção
Sonho de menina: jogar no Orlando Pride, time da brasileira Marta, escolhida seis vezes a melhor do mundo
Desejo dos pais: uma bolsa de estudos para a filha jogar em algum time universitário nos Estados Unidos

Aos nove anos, Natália Pereira se tornou a primeira menina a ser aceita para jogar na categoria de base masculina de um clube que disputa a série A do Brasileirão, o catarinense Avaí. Em um momento em que a pastora evangélica e ministra da Família Damares Alves diz que fará as meninas do Brasil usar rosa e serem tratadas como princesas, Natália deu um drible no preconceito. Sempre em campo de lacinho no cabelo (rosa, por sinal) compondo com meiões, chuteirinhas e a tradicional camisa listrada azul e branca do clube, ela se impôs diante de treinadores e meninos da mesma idade ao dominar os fundamentos do esporte. Miudinha, atua como meia-atacante, posição ocupada só por quem sabe tratar bem a bola.

Boladas e luxações

O mérito técnico é só dela, assim como a determinação — que para uma criança veio na forma de pedidos insistentes, bateção de pé e alguma birrinha com a família. Como o Avaí não possui futebol feminino em nenhuma categoria, o presidente Francisco Battistotti aceitou inscrevê-la na peneira dos meninos, após insistentes pedidos do pai. Tudo começou quando ela ouviu alguém comentar na escolinha de futebol feminino que frequentava que, se fosse menino, jogaria em time grande. O Avaí não é uma potência nacional, sempre se alternando entre a primeira e segunda divisão. Seu maior nome é um torcedor, o ex-tenista Guga, mas volta e meia assusta os grandes times em seu estádio, a Ressacada.

Após o carnaval, começam os treinos no sub-11. Antes, só futsal, modalidade em que Natália joga como pivô. A mãe alerta que será um pouco puxado, com treinos quatro vezes por semana, sem descuidar da rotina e deveres de aluna do quinto ano. “Quando eu crescer, não sei o que vou estudar. Só sei que quero ser jogadora da Seleção e do Orlando Pride, onde joga a Marta”, diz, citando o time da Flórida onde atua a maior jogadora do Brasil, eleita seis vezes a melhor do mundo pela FIFA — Cristiano Ronaldo e Lionel Messi possuem cinco premiações cada um.

Novidade no Avaí, Natália já era conhecida por seu avaliador, Lucas Colturato. “Acho que ela vai ajudar bastante. Tem personalidade, qualidade técnica e na parte física está igual aos meninos de sua idade”, diz. Não há nada que proíba times mistos nas categorias inferiores do futebol. Até os 14 anos, é possível jogar de igual para igual. “Nossas grandes jogadoras, Marta, Cristiane e Formiga, no início só jogavam com meninos”, diz Marco Aurélio Cunha, coordenador de futebol feminino da CBF, que considera Natália muito boa para sua idade e promissora.

“A precocidade ajuda. A presença dela entre os meninos é relevante. O futebol feminino tem que quebrar barreiras todos os dias” Marco Aurélio Cunha, coordenador de seleções femininas da CBF

INSPIRAÇÃO Marta foi eleita melhor do mundo em seis
ocasiões: Messi e Cristiano Ronaldo venceram cinco vezes cada (Crédito:Divulgação)

De olho no futuro, os pais a levam uma vez por mês para treinar no Centro Olímpico, em São Paulo. De início ela ficou surpresa por encontrar dezenas de outras meninas, mas encarou bem jogar com as mais velhas, contaram seus treinadores Camila Barros e Leonardo Alves. “Minha mãe não quer morar em São Paulo, mas ali pelos 14 anos vou ter que escolher”, diz. Medo das maiores ela parece não ter. Volta e meia uma bolada no rosto faz sangrar sua boca por causa do aparelho ortodôntico. Bobagem. Até agora foram nove trincas, luxações e fraturas em dedos da mão e nos pés. “Cinco foram jogando. As outras quatro aconteceram nas aulas de taekwondo”, explica.

A entrada de Natália no mundo da bola pode ter sido na hora certa para quem sonha virar gente grande em campo. A FIFA e a Conmebol, a confederação sul-americana, querem que os grandes clubes formem equipes femininas que participem de jogos oficiais, como condição para que os times masculinos possam jogar as copas continentais. “Abriu a porteira de vez para as meninas. A hora é agora”, diz Cunha, da CBF. Se isso ocorrer, a maior vitória para os pais da goleadora precoce de camisa azul e lacinho rosa seria vê-la jogar bem para obter uma bolsa universitária no exterior.

Elas ganham campo

1.700
Jovens inscritas só nas últimas peneiras das bases do Corinthians (800), São Paulo (500) e Fluminense (400), ocorridas em novembro e janeiro

906
Jogos oficiais a serem disputados em 2019 nos campeonatos e copas femininas sub-17, sub-18, sub-20 e aspirantes

254
Partidas previstas este ano para as edições femininas do Brasileirão série A e Copa do Brasil

Vídeos de Natália jogando futebol society