Nas Filipinas, resgate de vítima resulta em abuso sexual

Nas Filipinas, resgate de vítima resulta em abuso sexual

"OperaçãoInvestigação da DW aponta que organizações que afirmam estar trabalhando para resgatar crianças do tráfico sexual na realidade podem estar facilitando o abuso delas.Aviso: Este texto contém relatos de exploração sexual de crianças que podem chocar alguns leitores.

Em julho de 2021, a organização cristã Destiny Rescue, criada para combater o tráfico sexual infantil, lançou uma operação secreta em Olongapo, cidade a noroeste de Manila, nas Filipinas. Os informantes da organização identificaram uma mulher que, segundo eles, traficava crianças para fins sexuais e decidiram detê-la.

Uma das crianças visadas era Alina, de 13 anos, que havia sido aliciada para prostituição. "Nossos pais não podiam mais nos sustentar", contou Alina à DW. "Eu precisava do dinheiro para o nosso sustento diário."

Alina contou que, numa noite de julho de 2021, ela e outras meninas foram abordadas na rua por dois homens que se apresentaram como Nico e Bryan. Eles as levaram a um restaurante e depois a um hotel. "Depois que ele tomou banho, eu também tomei", disse Alina. "Então aconteceu." Ela disse que Nico lhe pagou 2.000 pesos filipinos (R$ 210).

Quase duas semanas depois, outra garota, Reyna, então com 16 anos, disse que foi apresentada aos mesmos dois homens, juntamente com um terceiro, e levada a um hotel para ter relações sexuais.

As meninas não sabiam na época que eram alvo de uma operação de vigilância e que os homens que, segundo elas, abusaram delas eram informantes que trabalhavam para a Destiny Rescue.

Os nomes de ambas as meninas foram alterados para proteger sua privacidade.

A investigação dos abusos

A Destiny Rescue é uma das várias instituições de caridade cristãs que se dedicam a salvar crianças do tráfico sexual. Só em 2024 ela arrecadou 12 milhões de euros, principalmente em doações nos Estados Unidos e na Austrália.

A equipe de jornalismo investigativo da DW viajou para as Filipinas, Austrália e Nova Zelândia para descobrir se homens que trabalham para uma organização que combate a exploração sexual de menores estariam usando a própria organização como meio para chegar a menores vulneráveis e abusar sexualmente delas.

Os jornalistas da DW entrevistaram vítimas, pessoas de dentro da organização, autoridades policiais e especialistas em tráfico infantil e consultaram documentos confidenciais, registros judiciais e arquivos públicos que revelam como as operações de resgate operam à margem da lei e colocaram crianças em risco em nome do resgate delas – e, em pelo menos um caso, serviram de acobertamento para supostos abusos.

Exploração sexual em larga escala

Um estudo de 2023 da Universidade de Nottingham e da ONG humanitária International Justice Mission estima que meio milhão de crianças filipinas sejam vítimas de exploração sexual.

"A maioria dos problemas relacionados ao tráfico de pessoas tem origem na pobreza", diz a especialista Rebecca Nhep, consultora técnica da Better Care Network, uma iniciativa de diversas organizações de defesa dos direitos da criança que promove padrões éticos no tratamento de crianças vulneráveis.

"Se você tem uma família que enfrenta pobreza ou outros tipos de crises, muitas vezes agravadas por desastres naturais, deslocamento interno, discriminação ou marginalização, isso contribui para o tráfico", explica Nhep. "E todos esses fatores se combinam para criar riscos e vulnerabilidades que podem ser explorados por traficantes em busca de crianças."

Devido a restrições orçamentárias, as agências públicas filipinas frequentemente dependem de grupos como a Destiny Rescue para combater o tráfico de crianças no país. "Você acreditaria que salvar uma criança pode custar cerca de 200 mil pesos filipinos (cerca de R$ 18 mil)?", diz Maria Sheila Portento, chefe interina do Centro de Proteção à Mulher e à Criança da Polícia Nacional das Filipinas.

Batida policial levantou suspeitas

O ápice da operação da Destiny Rescue em Olongapo foi uma batida policial num resort de luxo à beira-mar em 4 de agosto de 2021. Alina e Reyna estavam entre as várias garotas convidadas para uma festa na piscina organizada por Nico e Bryan.

"Disseram que iríamos apenas nadar e beber álcool", disse Alina. Nico, que segundo ela havia pagado por sexo com ela apenas algumas semanas antes, estava na piscina.

Então, o Departamento Nacional de Investigação das Filipinas (NBI) invadiu a festa. "Eles nos perseguiram depois que nos dispersamos e nos separamos. Fugimos por medo", relata Reyna. "Eu estava com medo de ir para a cadeia e meus pais descobrirem o que aconteceu."

Com toalhas na cabeça, as garotas foram levadas para o escritório local do NBI, onde foram informadas de que haviam sido resgatadas – e que estavam sob vigilância havia meses. Foi então que as garotas entenderam que Nico e Bryan faziam parte da missão de resgate.

As garotas dizem que se sentiram traídas. "Eles nos usaram, nos pagaram", diz Reyna. "Se o método de persuasão deles é ser convincentes como clientes, é irônico que eles 'nos ajudem' e nos usem ao mesmo tempo."

Mas Alina e Reyna ainda não tinham conhecimento do grupo por trás da operação de vigilância e resgate.

Por trás da operação

Questões sobre a identidade dos dois homens foram levantadas inicialmente pelo assistente social filipino Jacob Santos, que pediu para não ter seu nome verdadeiro divulgado por motivos de privacidade. Ele entrevistou as vítimas quando elas chegaram ao abrigo para crianças exploradas.

"Duas das meninas me disseram que foram abusadas sexualmente por agentes", relatou Santos. "Elas me perguntaram se também poderiam prestar queixa contra os agentes."

Santos disse que solicitou os arquivos oficiais do caso às autoridades, nos quais encontrou um relatório enviado pela Destiny Rescue ao NBI anunciando a missão de vigilância. O relatório citava Alina como vítima e continha detalhes que Nico havia solicitado a ela anteriormente, incluindo nome, idade e endereço.

Em busca de respostas, Santos e outros funcionários do abrigo se reuniram com um diretor da Destiny Rescue. Santos disse que o diretor então ligou para um agente da Destiny Rescue, que teria confirmado o abuso sexual.

"O agente contratou pessoas, os chamados informantes, para coletar informações. E esse informante confirmou que eles foram a um hotel e tiveram relações sexuais com uma das meninas", diz Santos.

Dias depois, a Destiny Rescue enviou uma carta confidencial à Polícia Nacional das Filipinas e reconheceu que houve uma "quebra no protocolo de resgate" durante sua operação em Olongapo. A DW obteve essa carta, que fala de um "informante desconhecido" que "praticou um ato indecente com uma menor".

"Em nossa própria investigação, constatamos a confirmação verbal do incidente, que supostamente ocorreu quando o informante se viu diante de uma situação de risco de vida", diz a carta da Destiny Rescue.

Não está claro qual era a "situação de risco de vida". A DW pediu esclarecimentos à Destiny Rescue, mas a organização não respondeu.

O que diz a Destiny Rescue

Na Austrália, a DW apresentou sua investigação ao diretor de operações da Destiny Rescue Limited, Geoff Harrison. Ele insistiu que a organização "dá grande valor à boa estrutura, bom treinamento e boa prestação de contas".

Mas, quando confrontado com a carta confidencial da própria Destiny Rescue reconhecendo a denúncia de abuso sexual, Harrison disse que parecia que o pessoal da "inteligência" da operação havia recrutado um informante que "fez algo errado".

"É totalmente possível que você tenha alguém que estivesse fornecendo informações a eles, e então eles recrutaram um amigo para participar da operação", disse Harrison. "Parece que algo deu errado."

Em busca de justiça

Alina e Reyna registraram queixas criminais contra os dois suspeitos, bem como contra os diretores filipinos da Destiny Rescue.

Um promotor do Departamento de Justiça das Filipinas investigou o caso e considerou dois informantes "provavelmente culpados por abuso de pessoa vítima de tráfico". Ambos permanecem foragidos.

O promotor arquivou as queixas contra os dois diretores da Destiny Rescue. "Nada foi comprovado nos autos que demonstrasse que eles cometeram um ato concreto para contribuir com a consumação do crime cometido por seus supostos agentes."

Com base nessa decisão, a Destiny Rescue declarou publicamente que "as alegações de que a Destiny Rescue estava envolvida em abuso de menores foram resolvidas e arquivadas" pelo promotor.

Uma única condenação

Apenas uma pessoa foi processada após a operação: uma jovem de 20 anos chamada Monica foi condenada por tráfico de pessoas e sentenciada à prisão perpétua.

A DW a entrevistou numa prisão em Manila. Ela confirmou detalhes importantes dos depoimentos de Alina e Reyna e disse que Nico e Bryan haviam tentado ganhar sua confiança antes da operação. "Eles vieram à minha casa e trouxeram comida, bebida e dinheiro", disse Monica à DW. "Eu suspeitava que eles estavam fazendo algo para que eu fosse pega."

Ela disse que Nico e Bryan lhe ofereceram, durante a última operação na piscina, cédulas marcadas que ela disse não ter aceitado. Ela alega ser inocente e que jamais trabalhou como traficante de pessoas, mas como prostituta.

As admissões da Destiny Rescue em documentos confidenciais, juntamente com os depoimentos das vítimas e da jovem condenada, evidenciam que foi a Destiny Rescue que conduziu toda a operação em Olongapo, na qual os informantes são acusados de terem abusado sexualmente de duas menores de idade vítimas do tráfico de pessoas.

Sem justiça não há paz

Reyna tem hoje 21 anos, um filho e está terminando os estudos. Ela se diz grata por ter sido retirada da prostituição, mas quer que os dois homens sejam punidos, que "sejam presos, percam seus empregos, sejam encarcerados para que não possam mais vitimizar crianças".

Alina, hoje com 17 anos, se mostra preocupada por seus supostos abusadores ainda estarem soltos. "Às vezes fico nervosa, porque eles podem nos procurar ou fazer algo para arquivar o caso", disse Alina. "Espero que sejam presos para que não possam abusar de mais crianças."