Filho de políticos perseguidos durante a ditadura do regime militar de 1964 a 1985, o vice-presidente do Senado, Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB,) se diz preocupado com os lampejos autoritários revelados diuturnamente por Jair Bolsonaro. Por isso, tem se valido de sua posição à frente do Congresso para cobrar respostas mais firmes de parlamentares em relação aos ataques feitos pelo presidente ao regime democrático. “Nós precisamos mostrar a Bolsonaro que há muito mais gente contra do que a favor de uma ruptura institucional.” Em entrevista à ISTOÉ, o senador afirmou que o ex-capitão provoca crises políticas como “cortina de fumaça” para tirar o foco dos problemas do País que o governo é incapaz de resolver. Alfinetou também o presidente da Câmara, Arthur Lira, que vem minimizando as ameaças de golpe promovidas pelo mandatário. “Esse processo de banalização pode nos levar a um momento em que não seja mais possível reagir. É arriscado desconsiderar essas ameaças à democracia. São investidas que fragilizam as instituições”, afirmou o dirigente do Senado.

Qual a opinião do senhor sobre as ameaças golpistas de Bolsonaro e a respeito do pedido de impeachment do ministro do STF, Alexandre de Moraes?
Não podemos minimizar esse tipo de discurso, nem o comportamento antidemocrático de Bolsonaro e seus apoiadores. Alguns podem até achar que seja só bravata. Mas existem outros, como eu, que são vigilantes na defesa da democracia. Esse tema é caro para mim, porque meu pai e meu avô foram vítimas do AI-5. Eles eram deputados e foram cassados. Temos que lutar pela defesa das instituições. O que lastimamos é ver que, desde o início, Bolsonaro conduz o País na direção contrária de tudo aquilo que é fundamentalmente necessário para que as nossas instituições permaneçam firmes. São provocações, são incitações quase que regulares do presidente, de ministros e das pessoas mais próximas a ele. Vejo isso como uma situação extremamente delicada. É algo atentatório. Não podemos minimizar nada disso.

O senhor acredita que o presidente quer dar um golpe?
Eu lamento essas investidas de Bolsonaro. E não acredito nisso, porque não acho isso possível no contexto atual. O Brasil não é uma ilha separada do resto do mundo. Qualquer investida dessa natureza teria reações imediatas. Deflagraria um processo de resistência fora do País, inclusive. Não significa que o governo não pense em golpe. As tentativas estão presentes. São as falas do presidente. Mesmo que o plano não se concretize, o fato de ele expressar descrença e sugerir ruptura institucional faz com que a relação entre os poderes se fragilize. Nós não chegaremos ao ponto de ruptura, mas isso não significa dizer que a democracia não esteja sendo atacada.

Dá para garantir que essas ameaças ficarão só no discurso? O desfile de tanques não deve ser levado a sério?
Não acredito em coincidências. Bolsonaro fez aquilo com o objetivo de intimidar, mais uma vez, a Câmara dos Deputados que, naquele dia, estava discutindo a questão do voto impresso. Aliás, proposta que, a meu ver, também não passou de mais um instrumento usado por Bolsonaro para desviar as atenções. Resultado: o presidente fez aquela cena quixotesca, tosca, provocativa e ofensiva. E que diz muito a respeito daquilo que o presidente nutre em sua intimidade. O ponto é que isso se voltou contra ele, porque muita gente percebeu que tudo não passava de uma cortina de fumaça.

O senhor acha que ele faz isso intencionalmente?
Sim, isso tem um fundo estratégico por parte de Bolsonaro. Ele quer erguer um muro que não permita que as pessoas vejam os problemas reais e mais graves que estão acontecendo hoje no País. Problemas esses que são muitos e que deveriam ser enfrentados como prioridade pelo presidente. Questões não são resolvidas por incompetência ou por completo desapreço do presidente com demandas relacionadas, por exemplo, à pandemia. São problemas ambientais, com os quais Bolsonaro mostra não se importar. Os sociais, com o aumento da miséria. As projeções de aumento da inflação num momento de crise econômica. O aumento no preço dos combustíveis e a ausência de uma política no setor energético. São muitos problemas não resolvidos. Bolsonaro provoca deliberadamente esse processo de fragilização das relações institucionais, falando apenas com uma parcela reduzida da população. Enquanto o presidente volta seu discurso para essas pessoas, o restante do Brasil fica esquecido.

Por que o presidente age assim?
A popularidade dele está em queda vertiginosa. Diante disso, ele estimula essa parcela da população que o apóia a radicalizar. Ele diz que essas pessoas ensandecidas precisam estar prevenidas caso ele seja derrotado nas urnas e já começa a preparar uma narrativa para se contrapor a isso. É mais fácil dizer que o sistema eletrônico é falho e passível de fraude. É só mais uma cortina de fumaça.

É possível frear Bolsonaro nessa escalada de ataques que ele faz à democracia?
Claro que é. Todos os dias a democracia tem sido atacada por atos de Bolsonaro. E não podemos ficar de braços cruzados. Essas ameaças impõem a todos a necessidade de defender a democracia, que é forte e inabalável. O nosso dever é rebater qualquer violência contra ela. As medidas que foram tomadas até agora de pouco adiantaram. Precisamos demonstrar uma reação forte e deixar claro que não permitiremos ataques à democracia. É papel do Poder Legislativo responder às insanidades do presidente. Não falo apenas como vice-presidente do Senado, mas também como cidadão. É um exercício diário que temos de fazer. Vivemos num ambiente contaminado pelas ações inaceitáveis do mandatário. Nos últimos meses, o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, tem assumido o papel de fiador da normalidade democrática. Isso suga as energias que deveriam ser concentradas para debater outras coisas, como a reforma tributária. A pauta de Bolsonaro é estabelecer sempre esse ambiente beligerante, de confronto e de animosidade.

O que o Senado poderia fazer para mudar o cenário de conflitos estabelecido por Bolsonaro?
Se o presidente não moderar o discurso, com certeza teremos que fazer algo mais. Bolsonaro precisa notar que existe muito mais gente contra do que a favor de uma ruptura institucional. Enquanto ele não tiver essa percepção, a tendência é de que continue a agir como está agindo. Não acho que faltaram respostas do Senado, mas entendo que é preciso reforçar que não aceitaremos um retrocesso político. Vamos mostrar a Bolsonaro que acima dos homens está a democracia. Acima de qualquer candidatura para 2022. Eles passarão e a democracia tem de continuar. Se nada for feito, estaremos num ambiente indesejável e de violência entre brasileiros.

O que achou das declarações de Arthur Lira segundo as quais as “cordas foram esticadas na realidade paralela”? É esse tipo de resposta que o Congresso tem que dar?
Respeito as opiniões dele. Mas não concordo. Isso que estamos vivendo hoje não é algo banal. Não dá para naturalizar isso. Esse processo de banalização pode nos levar a um momento em que não seja mais possível reagir a qualquer coisa. Não podemos tratar isso como simples bravatas jogadas ao vento. Afinal de contas, elas são ouvidas por muita gente. Quantos milhões de pessoas, por exemplo, deixaram de se vacinar porque Bolsonaro disse que não havia necessidade? Muita gente ouve e se convence de que o presidente tem razão. É arriscado desconsiderar esse movimento. São investidas que fragilizam dia a dia as nossas instituições. Imagine: se um dia a sociedade decidir que não acredita mais no Judiciário, o que será de nós? Quando as pessoas não se sentirem mais representadas pelo Congresso, o que vai ser depois disso? Um regime de exceção, totalitário e autoritário.

Há risco de acontecer no Brasil o que ocorreu nos EUA, com a invasão do Capitólio?
Existe. O presidente fortalece o discurso de um grupo radical. E muita gente no Brasil está sendo levada por essa torrente de teses pelas quais Bolsonaro advoga. Aquilo que vimos nos Estados Unidos foi a reação a um resultado legítimo revelado pelas urnas. E nós temos que ter cuidado para que isso não se repita aqui. E evitar logo cedo. A gente faz isso mostrando ao presidente que as nossas instituições são fortes e que nossa sociedade não apóia ideias como essas. Há um número maior de defensores do regime democrático. Isso precisa ser dito. É preciso falar que a esmagadora maioria dos brasileiros não concorda com desvios de conduta, com a ausência de políticas desse governo. É bom ser dito, inclusive, pela caserna. O vice-presidente tem falado isso de maneira muito clara, se colocando contra o que defende Bolsonaro. E isso tem feito com que Mourão fique segregado por completo do governo. Para os outros poderes, esse gesto é muito importante.

Acha que a solução seria o impeachment?
Desde que Rodrigo Maia estava na presidência da Casa, sempre defendi que havia motivos para que os pedidos de impeachment fossem analisados. Mas, desde aquela época, venho me convencendo de que isso não será levado adiante. Não posso aqui alimentar uma falsa expectativa de que os pedidos serão analisados. Porque não vão. Não foi com Maia. Não serão com Arthur Lira.

A pandemia fez com que muitos brasileiros passassem a chamar Bolsonaro de genocida. O senhor concorda com isso?
De fato, desde o começo da pandemia, Bolsonaro teve uma atitude que explica as consequências do que estamos vivendo até hoje: um número enorme de mortos, aumento da pobreza e todas as dificuldades que a crise trouxe. Nenhum outro chefe de Estado do mundo fez isso. Bolsonaro minimizou a gravidade do vírus. Chamou a doença de gripezinha. Era orientado por um gabinete paralelo que dizia que superaríamos essa situação em menos de um mês. Confrontou governadores e prefeitos. Não quis coordenar uma ação conjunta na pandemia. Se, desde o início, tivéssemos tido essa coordenação, com participação de Bolsonaro, os resultados seriam outros e bem menos devastadores. Seria outra realidade se Bolsonaro tivesse uma postura mais responsável. E não teve, lamentavelmente.