‘Não-monogamia’: Entenda a perspectiva relacional que vem ganhando espaço na atualidade

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Nos últimos anos, a “não-monogamia” tem se tornado um assunto cada vez mais discutido e aberto na sociedade. O modelo tradicional de relacionamento monogâmico, onde duas pessoas exclusivamente se comprometem em um relacionamento amoroso e sexual, tem sido colocado no centro de discussões sobre patriarcado, colonialismo e capitalismo.

A não-monogamia pode ser definida como qualquer tipo de relacionamento onde as pessoas envolvidas permitem que haja envolvimento emocional e/ou sexual com outras pessoas, além do casal. Essa abertura pode ser feita de diversas maneiras. “A não-monogamia é um termo guarda-chuva para modelos relacionais que fogem aos padrões da monogamia. Ela contradiz uma das principais regras da monogamia: a exclusividade, propondo uma ‘não exclusividade’ no campo afetivo e sexual. A ‘NM’ (não-monogamia) defende a proposta de que é possível amar mais de uma pessoa e que esses amores podem ser vivenciados dentro de um acordo ético e honesto das pessoas envolvidas na relação. A não-monogamia não se refere somente ao modelo relacional, mas à contestação de toda a ‘estrutura monogâmica’ dominante em nossa sociedade, a qual reforça um modelo patriarcal e individualista focado na família nuclear, explica Adê Monteiro, psicóloga e consultora do site Sexlog.

Segundo ela, o termo “não monogamia ética” é a habilidade de desenvolver e cultivar nossa autonomia afetiva. Essa autonomia pressupõe uma “independência emocional” e o fortalecimento da individualidade, diferente da “fusão” que ocorre nas relações românticas. “É também sobre a construção de dinâmicas relacionais saudáveis, que não reproduzam a ideia de possessividade e controle tão presente na estrutura monogâmica, e que também não cerceiem a liberdade das pessoas envolvidas”, contextualiza.

A NM se diferencia do termo poligamia, muito mais conhecido na cultura, pois esta envolve especificamente o casamento com várias pessoas legitimado pelo estado ou por alguma religião, normalmente um homem casado com várias mulheres, que não podem se relacionar com outras pessoas.. Como alguns mórmons, por exemplo, que se casam com várias mulheres. “É uma prática legalizada em países extremamente machistas e opressores às mulheres, o que torna o termo incongruente com a proposta de uma não monogamia (ética)”, diz.

Embora ainda seja considerado tabu por muitas pessoas, a não-monogamia tem ganhado cada vez mais adeptos, principalmente entre os jovens. Em um mundo onde as pessoas buscam cada vez mais a liberdade individual e a quebra de padrões, muitos têm encontrado na não monogamia uma forma de viver seus relacionamentos de maneira mais autêntica e livre.

O que a política tem a ver com isso?

Para compreender como a monogamia é uma construção social, é preciso avaliar sua história. “Longe de ser algo intrínseco ao ser humano, a monogamia é uma estrutura social, um alicerce fundamental do patriarcado. Nessa conjuntura, o pilar central é o controle dos corpos alheios, principalmente o corpo da mulher – para que ela não tenha filhos com outros homens, e para que os bens acumulados não sejam divididos com os filhos de outros”, explica Adê. “Dentro de um contexto histórico, a monogamia surgiu juntamente com a propriedade privada, quando os homens ‘cercaram’ suas terras, seus animais e suas mulheres, apropriando-se dessas ‘posses’, para que ninguém pudesse tomá-las. Mais tarde com a ascensão do capitalismo, vemos o homem cada vez utilizando de seu poder e privilégios para, não somente proteger esses bens, como para acumular mais”, analisa.

‘Não-monogamia’: Entenda a perspectiva relacional que vem ganhando espaço na atualidade

Bandeira da não-monogamia

A monogamia é, antes de mais nada, uma estrutura social. Um elemento que forma uma certa coesão no entendimento do que é “certo” e “errado”, “ético” ou “pecado”. A relação do Estado com essa norma é tão íntima, que até 15 anos atrás o adultério era tipificado como crime, quando a Lei 11.106/2005 tirou do Código Penal a pena de quinze dias a seis meses de detenção para a prática.

Os ventos da mudança

O script de namorar, casar, ter filhos e ser felizes para sempre há tempos não está trazendo a satisfação pessoal que muitos esperam. “Há pessoas que não se encaixam dentro do modelo monogâmico de relacionamento. Os índices de infidelidade chegam a 70% em várias sociedades e esses índices indicam que uma boa parcela já não se encaixa no preceito monogâmico”, explica Adê. Segundo dados do Colégio Notarial do Brasil – CNB, foram registrados 80.573 divórcios em 2021 no Brasil, o maior número desde 2007.

Quem busca por uma nova forma de encontrar a felicidade em suas relações encontra na não-monogamia um espaço de acolhimento e empoderamento pessoal. “Estamos vendo um crescente movimento em busca de outras possibilidades de se relacionar, e dentro desse movimento encontra-se o Poliamor, o Amor Livre, a Anarquia Relacional, Relações Livres, etc. Todos esses se encaixam numa proposta de não monogamia ética, ou seja, a possibilidade de se amar várias pessoas simultaneamente, de forma consensual, honesta e responsável. Esses são considerados formatos de relacionamento alternativos à monogamia, que estão sendo cada vez mais explorados”, ressalta.

E não é apenas sobre sexo, a não-monogamia também fala sobre abrir espaço para amar de forma livre, cultivar diferentes relacionamentos e criar uma rede de apoio e convívio que supra suas necessidades. “Simpatizantes da não-monogamia ética argumentam que a liberdade nos relacionamentos deve ser afetiva e não somente sexual (como muitos críticos pressupõem), e também enfatizam que não há um modelo correto, e sim aquele que se encaixa no perfil de cada pessoa”, explica.

Contudo,, é importante lembrar que a não-monogamia não é algo simples sde ser colocado em prática. É necessário muita comunicação, confiança e respeito entre os parceiros para que esse tipo de relacionamento funcione. E, assim como em qualquer tipo de relação, há desafios que precisam ser superados, como a possibilidade de ciúmes e inseguranças. “A não monogamia, apesar de ser considerada um “relacionamento do futuro” não deveria ser imposta a ninguém, assim como a monogamia também não deveria ser imposta a todos os indivíduos como única opção relacional”, rebate.

O amor romântico na cultura e mídia

O entendimento de amor romântico também sofre com a representação na mídia. Existe uma cultura de “só é possível amar uma pessoa por vez”, quando o amor que se tem pelos amigos, familiares, filhos, etc, pode ser diverso e direcionado para várias pessoas ao mesmo tempo. “O amor na versão romântica, traz um ideal de perfeição ética e estética, junto à promessa de plenitude no encontro com o “ser amado”. Fomos ensinadas que deveríamos buscar incessantemente por aquela pessoa que seria a nossa ‘cara metade’, que iria nos trazer paz e alívio para as nossas dores, nos suprir em todas as necessidades, o nosso par ideal: aquele ser quase místico que nos completa, e assim alcançamos a plenitude da vida”, explica.

Comédias românticas, novelas, literatura, tudo reforça o ideal inalcançável do amor perfeito, do “felizes para sempre”. “No ideal romântico a razão de se viver é encontrar a alma gêmea e seus problemas estarão resolvidos… a pessoa amada vira o centro em volta do qual você gravita. O amor romântico é um mito porque se refere a um conjunto de crenças, valores e expectativas centradas na simbiose, no sacrifício e na posse”, diz Adê.

Contudo, a visão sobre outras formas de se relacionar também tem mudado. A representação de formas de amar alternativas está crescendo em novelas, filmes, séries e programas, inclusive na atual edição do Big Brother Brasil, em que os participantes Fred Nicácio e Aline Wirley revelaram que vivem relacionamentos não-monogâmicos. “Cada vez mais as pessoas se vêem insatisfeitas com o modelo relacional vigente, querem romper com a traição e buscam possibilidades de conexões afetivas honestas que não as limitem”, diz Adê.

A não-monogamia e o feminismo

Dentro de debates feministas, a não-monogamia tem espaço de destaque, visto que as mulheres são as mais prejudicadas e vitimizadas pelo patriarcado e objetificação, que as vê como posse. “A monogamia pressupõe a exclusividade e a fidelidade, e essa exclusividade se impõe através de regras implícitas de posse e controle. As estatísticas de feminicídios no Brasil são alarmantes – crimes cometidos contra mulheres por motivos torpes muitas vezes relacionados ao ciúmes e à possessividade. A mulher em nossa cultura sempre foi vista como propriedade do homem”, explica Adê.

A estrutura monogâmica, portanto, é resultado direto do patriarcado e hétero cisnormatividade, que cerceia muito mais a liberdade feminina do que a masculina. A sociedade é muito mais branda e compreensiva com a traição masculina, e homens e mulheres usam da falácia biológica para defender que homens “são assim por natureza”. “Por essa razão, a não-monogamia é uma mudança de paradigma que visa proporcionar às mulheres o mesmo direito de autonomia afetiva e sexual que os homens sempre tiveram”, explica a psicóloga Giselle Rocha.

Para Rocha, essa crença começa a ser imposta desde muito cedo. “A socialização desigual entre meninos e meninas, ainda prevê que elas devam ser frágeis, submissas e recatadas, enquanto eles devem ser fortes, dominadores e sexualizados. Questionar o modelo monogâmico possibilita rever todo conjunto de estereótipos que oprime as mulheres”, explana.

“Para exercer a não-monogamia de maneira ética precisamos garantir que as mulheres possam se expressar autenticamente e comunicar seus desejos, sem estarem sujeitas ao jugo masculino. Entretanto, o machismo estrutural também pode ser reproduzido numa proposta igualitária como a não-monogamia, o que torna imprescindível aliar o debate ao feminismo”, conclui.