O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) dá início nesta quinta-feira (22/06) a um julgamento que pode tornar Jair Bolsonaro inelegível pelos próximos oito anos. A ação julgada, que acusa o ex-presidente de abuso de poder político, foi movida pelo PDT para investigar uma reunião de Bolsonaro com representantes diplomáticos de outros países em meados de 2022, na qual o então mandatário desacreditou as urnas eletrônicas.

À época pré-candidato à reeleição, Bolsonaro fez uma série de acusações mentirosas e sem provas contra o sistema eleitoral brasileiro. Ele repetiu teorias fantasiosas sobre as urnas eletrônicas, atacou ministros do Judiciário e declarou que o TSE deveria acatar “sugestões de transparência” feitas pelas Forças Armadas. O evento durou cerca de 50 minutos e foi transmitido ao vivo pela TV Brasil e em redes sociais.

Para Vânia Aieta, professora-adjunta do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenadora-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), não há dúvida de que Bolsonaro cometeu abuso de poder durante o encontro.

“Esse julgamento tem muita importância em razão de se tratar de um caso grave de abuso do poder político”, afirma em entrevista à DW.

Ela também considera que a alegação da defesa, de que a reunião serviu para “intercâmbio de ideias” é mentirosa. “Intercâmbio de ideias não traz apelo golpista”, diz. “A defesa tenta desconfigurar a tipologia do abuso procurando tipificar os atos criminosos de ruptura da ordem democrática como um mero incidente de liberdade de expressão.”

A especialista também afirma que o julgamento no TSE, que pode ser estender por mais duas sessões, nos dias 27 e 29 deste mês, pode servir como um recado para a classe política de que mentiras e acusações sem provas contra o sistema eleitoral não serão aceitas.

“Muitos governantes, e destaco notadamente os chefes do Executivo, têm a falaciosa impressão de que o poder imenso que possuem os blinda das ações indesejáveis ou até mesmo criminosas que cometem. Não é assim”, afirma.

DW Brasil: Os argumentos da ação que será julgada pelo TSE são válidos? Qual a sua avaliação?

Vânia Aieta: Sim, não há dúvida. Trata-se de hipótese ensejadora de abuso. Esse julgamento tem muita importância em razão de se tratar de um caso grave de abuso do poder político: um presidente da República, no exercício do mandato, que se vale de uma reunião oficial com todo o corpo diplomático de países estrangeiros para denunciar falaciosamente, sem qualquer prova, o sistema eleitoral brasileiro, que tem sido um modelo de segurança, trazendo desinformação e risco institucional.

O Ministério Público Eleitoral defendeu tornar Jair Bolsonaro inelegível. Qual o peso dessa manifestação para o julgamento no TSE?

Enorme e significativo. O Ministério Público, fiscal da lei, é o advogado da sociedade, vigilante permanente das irregularidades e da má condução das coisas da tradição eleitoral. Não há obrigatoriedade em seguir o parecer ministerial, mas ele sempre é respeitado pela Corte [TSE].

A defesa de Bolsonaro alega que o encontro com diplomatas serviu para “intercâmbio de ideias” e que o público-alvo eram os próprios cidadãos eleitores brasileiros. Os argumentos têm peso para contrapor a tese apresentada na ação? Por quê?

Existem casos em que a subsunção do fato à norma não é tão evidente. Carregam algum subjetivismo. Mas outros, como este que será julgado, configuram, pela lei eleitoral brasileira, um inconteste incidente de abuso de poder, causa ensejadora de uma ação que pode resultar na inelegibilidade de Bolsonaro. A tese defensiva chega a ser um escárnio. Intercâmbio de ideias não traz apelo golpista. Tampouco se convocaria toda a diplomacia internacional se o destinatário da mensagem fossem os brasileiros. A defesa tenta desconfigurar a tipologia do abuso procurando tipificar os atos criminosos de ruptura da ordem democrática como um mero incidente de liberdade de expressão.

O corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Benedito Gonçalves, relator do processo contra Bolsonaro no TSE, negou a retirada da “minuta do golpe” encontrada na casa de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça. Qual o peso do documento no julgamento que se inicia? Por quê?

O documento da “minuta do golpe”, adicionado a outras ações que compõem elemento conjuntural, trazem um produto significativo. Os atos de 8 de janeiro são apenas um plus em toda uma engenharia golpista e criminosa que vinha sendo montada pelos asseclas do presidente, temerosos de um resultado desfavorável que já vinha se alinhando nas eleições.

Em caso de condenação à inelegibilidade, qual o recado do TSE para a classe política para as próximas eleições?

Muitos governantes, e destaco notadamente os chefes do Executivo, têm a falaciosa impressão de que o poder imenso que possuem os blinda das ações indesejáveis ou até mesmo criminosas que cometem. Não é assim. Eles ficarão com a lição do rule of law [Estado de Direito], o predomínio do direito consagrado desde 1215, uma conquista civilizatória de que, afinal, a lei é para todos, não obstante o quão poderosos possam ser.

É possível que, em caso de condenação do ex-presidente, apoiadores e o próprio Bolsonaro acusem o TSE de conluio com o atual governo ou de julgamento político. Há como a Corte se proteger de eventuais críticas e ilações?

Isso [bolsonaristas] já o fazem. O direito de crítica é amparado constitucionalmente. Podem criticar o resultado da tomada de decisão judicial de forma ordeira e respeitosa, jamais ofendendo a Corte ou se valendo de uma interpretação equivocada do que seja liberdade de expressão para fomentar o cometimento de crimes como o da ruptura do Estado Democrático de Direito, que inclusive é punível até mesmo na modalidade da tentativa.

Em caso de inelegibilidade nesta ação, qual poderá ser o destino das outras 15 Ações de Investigação Judicial Eleitoral (Aijes) contra Bolsonaro ajuizadas no TSE?

Cada ação terá seu julgamento e sua independência.