Aos 68 anos de idade e 22 como membro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes é o mais polêmico e também o mais influente ministro da Corte. Decano do tribunal, como os juristas se referem ao mais antigo magistrado, nada passa pelos bastidores do mundo jurídico brasileiro sem que ele esteja por trás das articulações. Isso aconteceu recentemente com a indicação do último ministro para o STF por parte do presidente Lula, o ex-ministro da Justiça Flávio Dino, e do Procurador-Geral da República (PGR), Paulo Gustavo Gonet Branco, com quem fundou, em 1998, o Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), escola privada de graduação e pós-graduação em Brasília que hoje tem ramificações até em Portugal. Gilmar foi nomeado para o cargo pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e deve se aposentar apenas em dezembro de 2030. Até lá, continuará dando as cartas também na política nacional. Em entrevista à ISTOÉ, o ministro, que foi presidente do STF (de 2008 a 2010), diz que a intenção de Bolsonaro, desde o início de seu governo, era provocar a instabilidade política e criar condições para um golpe, mas que, no entanto, não obteve respaldo na maioria das Forças Armadas. Para o ministro, portanto, não “há clima para anistia ao ex-presidente Bolsonaro”.

Na av. Paulista, Bolsonaro falou em passar uma borracha no 8 de janeiro e pediu anistia aos que praticaram os atos de vandalismo. O sr. concorda com qualquer tipo de anistia a esses criminosos?
Considero que não há clima para anistia a Bolsonaro e seus aliados. Estamos em pleno processo de responsabilização dos autores. Do ponto de vista político, eu vejo que o ex-presidente está tentando dar uma resposta aos seus seguidores. Estes, em relação a tudo o que ocorreu antes e depois dos atos de 8 de janeiro, foram abandonados, deixados ao léu. Isso depois de o ex-presidente ter estimulado acampamentos em frente a quartéis, o que deveria ser repudiado. Não cabe fazer manifestações em frente a quartéis, isso precisa ficar muito claro. Também não cabe fazer manifestações ou reuniões em frente a hospitais, por razões diferentes. Desde novembro tivemos comitês e grupos, alguns paramilitares, na frente de quartéis usando até mesmo luz e água da União, pagos pelo contribuinte. Faz sentido isso? Uma manifestação totalmente ilícita? É evidente que isso não faz o menor sentido. E ainda tivemos, no final, a fala o general Braga Netto, afirmando que as pessoas deveriam continuar acreditando… E depois o então presidente vai embora do Brasil, deixando as pessoas em qualquer lugar. Certamente em algum momento, como agora, lhe ocorre uma espécie de estupro moral, do tipo: “Eu pelo menos tenho que defendê-los”. Imagino ser esse o contexto que ensejou a sua proposta de anistia para os aliados. Não faz sentido algum.

Em quase 30 anos de STF, o sr. acredita que o momento em que a democracia esteve mais ameaçada foi no 8 de janeiro?
Acho que sim. Raramente teria sido perceptível um movimento de comprometer a estabilidade democrática como no último governo. Todas as ameaças que tivemos, como naquele 7 de setembro, e também tudo aquilo que as investigações demonstraram, as conversas de altos funcionários do governo e autoridades dizendo que tinham de antecipar uma crise.

“Não há clima para anistia a Bolsonaro”, diz ministro do STF Gilmar Mendes
“Em 8 de janeiro, falava-se na ‘festa da Selma’, e depois soubemos que a esposa do almirante Garnier se chamava Selma. E foi exatamente ele que teria se colocado à disposição do golpe” (Crédito:Charles Sholl/Brazil Photo Press/Folhapress)

O sr. acha que havia condições objetivas para um golpe de Estado?
A sociedade está mais madura, as instituições estão mais fortes. Mesmo no âmbito das Forças Armadas não se formou maioria para uma tentativa desse tipo, uma espécie de aventura. De qualquer forma, é preocupante que um ministro da Defesa (general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira) participe desse tipo de reunião dizendo que estava próximo da “linha do inimigo” e estava trabalhando neste sentido. As palavras contam uma história e, para ele, o TSE era um inimigo. É notório que ele não apresentou relatórios produzidos pelos seus técnicos informando que não havia preocupação quanto ao funcionamento das urnas eletrônicas, que não havia nada de suspeito que justificasse qualquer preocupação. O pronunciamento do general Heleno, o chefe do GSI na época, foi na mesma direção, assim como o general Braga Netto. São coisas muito sérias, que precisam ser mostradas, provando que essa gente se comprometeu com várias coisas inconstitucionais.

Um ano depois dessa tentativa de golpe, o sr. entende que continuamos sob ameaça desses grupos extremistas?
Penso que o País saiu mais forte e maduro dessa crise. Temos de fortalecer as instituições, avançar no combate às fake news, com aprovação de leis que evitem a disseminação de notícias falsas. No dia 8 de janeiro de 2023, por exemplo, falava-se em uma tal “festa da Selma”, e depois soubemos que a esposa do almirante Garnier, então comandante da Marinha, se chamava Selma. E foi exatamente o almirante que teria se colocado à disposição para o movimento, dizendo que a Marinha apoiaria o golpe. É preciso revelar esses fatos, investigar os responsáveis, identificar e punir os autores.

Tudo indica que só não houve o golpe de Estado porque a maioria dos militares não aderiu. Pelo menos é o que revelam as investigações da PF, sob coordenação do STF, certo?
Acredito que hoje seja muito difícil preparar e executar um golpe. Todas as instituições foram veementemente contra as tentativas de ruptura institucional. As declarações dos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira, foram na linha de condenar esses movimentos e de exaltar a democracia, e isso ocorreu desde as eleições de 2022. Sempre falaram a favor do reconhecimento do resultado das eleições. Obviamente, depois que ocorreram o reconhecimento e a consolidação dos resultados das urnas, ficaria muito difícil executar uma aventura como a tentativa de golpe. No entanto, quando se observa que pessoas que estavam no Poder aventaram essa possibilidade, é algo que causa muita preocupação. Tenho dito que o País precisa fazer as reformas que são reclamadas. Não é algo que possamos ver com naturalidade um militar ocupando o Ministério da Defesa, ou militares em cargos que deveriam ser ocupados por civis, por exemplo. Se for o caso, que o militar vá para a reserva. O mesmo vale para a questão eleitoral envolvendo policiais militares. Quem sabe a existência de uma quarentena pudesse ser discutida, também nos casos em que juízes e promotores públicos decidissem concorrer ao Executivo ou ao Legislativo. Nós vimos, no Distrito Federal, que essa situação indefinida esteve no cerne do problema de insegurança que ocorreu no 8 de janeiro de 2023.

As investigações da PF mostram que Bolsonaro já vinha com essas ideias golpistas desde o início do mandato. Atacava as urnas eletrônicas, estimulava as milícias digitais e a Abin paralela, ao mesmo tempo que confrontava o STF e outras instituições. Ele sempre quis o golpe?
O que se percebe é que sempre houve uma opção pela instabilidade. Os ataques às urnas eletrônicas eram um pretexto, pelo que podemos ver hoje. Nos EUA, o voto é manuscrito, não tem urna eletrônica. Não obstante, presenciamos o ex-
presidente Donald Trump falando com o seu secretário de Estado para que se arrumasse 16 mil votos com os quais eles resolveriam o “problema”. Isso seria impossível no Brasil, não há manipulação de votos no Brasil, não há contabilização manual de votos, o sistema eletrônico é que faz isso. E então houve a criação da lenda de que a urna eletrônica é insegura. Resolveram que queriam reimplantar votos impressos. Depois inventaram que queriam auditar a votação e o sistema de contagem de votos. O TSE, com muita boa vontade, na gestão do ministro Luís Barroso, chamou os militares para participarem de todo o processo de verificação, fiscalização e auditagem dentro de uma equipe multidisciplinar. E ainda assim houve a atuação de um hacker de Araraquara para tentar provar que a urna poderia ser fraudada. Esse episódio, é um momento muito baixo na história da República e do Ministério da Defesa.

No caso da minuta do golpe, que chegou a ter cópias apreendidas no escritório do ex-presidente e que o próprio Bolsonaro admitiu existir na manifestação da av. Paulista, o sr. acha que isso configura uma confissão de crime?
Vamos aguardar o desenrolar desses acontecimentos, as investigações estão lá adiante. Mas é um trunfo dos investigadores terem encontrado essa minuta, além da determinação de prisões de determinadas autoridades. Isso tudo é bastante revelador das intenções perversas dessas pessoas. Certamente teremos mais informações no futuro sobre os propósitos dessas pessoas.

O nome do ministro Alexandre de Moraes estava na lista dos que seriam presos, e com ele aconteceriam coisas piores. Corremos o risco de algo muito grave?
Sem dúvida que sim. Houve risco, talvez de um golpe ou de uma quartelada, uma coisa muito séria, que precisa ser analisada e investigada. Que os autores sejam identificados, responsabilizados e punidos.

O evento que Bolsonaro organizou na av. Paulista poderia servir como uma “vacina” contra uma eventual condenação ou mesmo uma ordem de prisão?
Vejo um esforço do ex-presidente de tentar demonstrar algum suporte popular para as pessoas que o defendem e para quem o apoia politicamente. Não vejo como isso possa impedir a tomada de decisões judiciais, sejam elas quais forem. Não creio em “vacina”.

“Não há clima para anistia a Bolsonaro”, diz ministro do STF Gilmar Mendes
“O que se percebe é que durante o governo Bolsonaro sempre houve uma opção pela instabilidade. Os ataques às urnas eletrônicas eram um pretexto, pelo que podemos ver hoje” (Crédito:Rafael Vieira)

O sr. já disse que foram presos e punidos os autores materiais do ataque, mas que ainda faltam ser identificados e punidos os mentores. Militares também devem ser punidos, pois participaram ativamente da quartelada?
Acho que sim. Tivemos um avanço nas investigações neste sentido. Militares foram identificados como participantes desse processo, e até como incentivadores da iniciativa. Certamente haverá uma investigação detalhada, com abertura de inquéritos e eventuais denúncias.

Se não fosse a atuação do STF poderíamos dizer que teríamos a virada de mesa que os bolsonaristas tentaram dar?
Desde o início do governo Bolsonaro, o STF agiu com muita firmeza, a partir dos inquéritos das fake news, quando o então presidente do STF, Dias Toffoli, designou o ministro Alexandre de Moraes para conduzir os processos. E então tivemos todas as situações que vieram com a pandemia de Covid-19, o que causou imensa irritação em setores do governo. O Supremo cumpriu a sua árdua e difícil missão em face de um governo que era, em sua maioria, negacionista. O STF atendeu a pedidos de prefeitos e governadores para referendar medidas protetivas e restritivas pregadas e adotadas pelo Ministério da Saúde. E também houve as celebrações de 7 de setembro de 2022 e 2023, onde o presidente Bolsonaro desferiu ataques ao STF. Não tenho dúvida de que a Corte foi protagonista na defesa da democracia.